O ponto nodal do Édipo e a chave metafórica do seu declínio

Nice


Como situar o “ponto nodal do Édipo”? O que é a “metáfora paterna” e qual é a sua função para o declínio do Édipo? Como os analistas lidam com tais questões quando surgem na clínica e de que forma elas aparecem? Neste texto, procuraremos, juntamente com Lacan, pensar e formalizar teoricamente estes questionamentos.


Em “Os três tempos do Édipo” (1999 [1958]), Lacan defende que na metáfora reside todas as possibilidades de articular o complexo de Édipo e seu móbil: o complexo de castração. O desenvolvimento desta posição ao longo do texto será acompanhado de demonstrações da insuficiência de certas fórmulas que, naquele momento, eram comuns na análise, e da tentativa de fornecer fórmulas mais precisas.

Para introduzir a problemática, Lacan colocará em questão a noção de Sujeito. “O que é um Sujeito?” Será, pergunta, alguma coisa que se confunde com a realidade individual que está diante dos olhos quando dizemos o sujeito? Ou, a partir do momento em que o fazemos falar, é uma outra coisa? Será que a fala é como que uma emanação pairando acima dele, ou será que impõe por si só, sim ou não, uma estrutura “e que diz que, quando há um sujeito falante, não há como reduzir a um outro, simplesmente, a questão de suas relações como alguém que fala, mas há sempre um terceiro, o grande Outro, que é constitutivo da posição do sujeito enquanto alguém que fala”? (Lacan, 1999 [1958]) p. 186).

Para Lacan, estas questões sobre o sujeito e a fala não são apenas teorização suplementar, mas decisivas para que se possa compreender e situar os efeitos com que se lida na análise, isto é, reconhecer no sujeito suas exigências, desejos e fantasias, e mesmo o que parece ser o mais incerto e difícil de captar e definir: em suma, a realidade. 

Além disso, estes desenvolvimentos iniciais sobre o sujeito e a fala, permitirão -lhe introduzir uma segunda temática, qual seja: a expressão “metáfora paterna”, cujo desenvolvimento o aproximará cada vez mais da questão central do texto relacionada a uma abordagem renovada do complexo de Édipo.

Na “metáfora paterna”, segundo Lacan, há no que foi constituído por uma simbolização primordial entre a criança e a mãe, a colocação do pai como símbolo, ou significante, no lugar da mãe. Esse “no lugar da”, sublinha, constitui a essência do progresso representado pelo complexo de Édipo. 

O triângulo filho-pai-mãe é real, mas se insere no real como uma relação simbólica, e justamente por isso, explica Lacan, pode ser objetivado e examinado. O triângulo simbólico é instituído no real a partir do momento em que há uma cadeia significante, a articulação de uma fala.

A relação primária de realidade se encontra na relação mãe-filho. Já a posição do Nome-do-Pai como tal, a qualidade do pai como procriador é uma questão que se situa no nível simbólico. Ela “pode materializar-se sob as diversas formas culturais, mas não depende como tal da forma cultural, é uma necessidade da cadeia significante” (Idem, p.187). Necessariamente, ao instituirmos uma ordem simbólica, alguma coisa corresponderá, ou não, à função definida pelo Nome-do-Pai.

A partir da primeira simbolização da mãe, ocorre uma simbolização primária em que se afirma o desejo da criança. E é justamente a partir dessa simbolização que são esboçadas todas as complicações posteriores da simbolização, na medida em que o desejo da criança corresponde ao desejo do desejo da mãe. Essa simbolização primordial abre ainda, para a criança, no plano imaginário, a dimensão do que a mãe pode desejar de diferente. Eis o desejo de Outra coisa fazendo sua entrada, de maneira confusa e virtual. “O desejo de Outra coisa que não o satisfazer meu próprio desejo, que começa a palpitar para a vida” (Lacan, (1999 [1958]), p. 188).

Esse algo mais, prossegue Lacan, é a existência de toda a ordem simbólica da qual a mãe depende e que, estando esta sempre mais ou menos presente, permite um certo acesso ao objeto de seu desejo. (…) Esse objeto, privilegiado na ordem simbólica, chama-se falo.

Lacan então, no âmbito de uma “dialética do complexo de Édipo”, procurará reconstituir a gênese que, segundo ele, faz com que a posição do significante paterno no símbolo seja fundadora da posição do falo no plano imaginário, como objeto privilegiado e preponderante. Tal distinção, acrescenta, poderá auxiliar numa melhor interrogação do doente em exame, quanto auxiliar positivamente no sentido da clínica e da condução da análise.

Antes de prosseguir, lembra que Freud e outros depois dele fizeram essa passagem pela “dialética do complexo de Édipo”. De fato, Freud em suas investigações observou as manifestações do complexo de Édipo e avaliou sua importância, tanto na vida da criança como no inconsciente do adulto. “Encontrei em mim e em todo lugar – escreveu ele a W. Fliess em 1897 – sentimentos de amor por minha mãe e de ciúmes de meu pai, sentimentos que são, acredito, comuns a todas as crianças pequenas”. E, mais tarde, afirmou que “a vida sexual da primeira infância culmina no chamado complexo de Édipo, na ligação afetiva ao genitor do outro sexo e concomitante rivalidade ante o do mesmo sexo, uma tendência que nesse período da vida prossegue desinibidamente como desejo sexual direto. Isso é de tão fácil confirmação, que realmente só com grande esforço pôde ser ignorado. De fato, todo indivíduo passou por essa fase, mas depois reprimiu de forma enérgica seu conteúdo e o relegou ao esquecimento  (Freud, 2011 [1925], p. 237).

Lacan então solicita que observemos o desejo do Outro, ou seja, o desejo da mãe e que comporta um para-além, que para ser alcançado demanda uma mediação, dada precisamente, pela posição do pai na ordem simbólica.

Se por um lado, afirma, a relação do filho com o falo se estabelece na medida em que o falo é o objeto do desejo da mãe, por outro, conforme atesta a experiência analítica, o pai é aquele que priva a mãe do objeto de seu desejo, e assim desempenha um papel central das neuroses, e em todo o desenrolar do complexo de Édipo. A experiência analítica, na perspectiva lacaniana, atesta ainda que todo sujeito, num dado momento da infância, posiciona-se de uma certa maneira no que se refere ao papel desempenhado pelo pai diante do fato da mãe não ter falo. “Esse momento nunca é elidido”.

É notável que Lacan nunca utilize a representação triangular para explicar a função do Édipo, preferindo falar de “metáfora paterna”. Ele chama de “nome-do-pai” a função simbólica paterna, ou seja, aquilo que constitui o princípio eficaz do Édipo e mostra que o “desejo da mãe” jaz nas profundezas do nome-do-pai. Essa forma de escrever o Édipo leva a crer que sua função é a de promover a castração simbólica.

O desfecho favorável ou desfavorável do Édipo está suspenso em três planos: castração, frustração e privação, exercidos pelo pai. O pai priva a mãe daquilo que ela não tem, isto é, de algo que apenas existe na medida em que se faz com que apareça na existência como símbolo. Mas que fique claro, adverte Lacan, o pai não castra a mãe de uma coisa que ela não possui. Na verdade, para que seja determinado que ela não o tem, é preciso que isso já esteja projetado como símbolo no plano simbólico. 

É neste plano de privação simbólica da mãe que, num momento específico da evolução do Édipo, a criança se vê na situação de aceitar, registrar, simbolizar ela mesma, significar essa privação, a partir da qual a mãe se revela objeto. Essa privação, o sujeito infantil assume ou não, aceita ou recusa. Eis “o ponto nodal do Édipo”.

A determinação do ponto nodal do Édipo, podemos assim dizer, é de suma importância para a orientação do processo analítico, mas ele, conforme Lacan, “não coincide, longe disso, com o momento cuja chave buscamos, que é o declínio do Édipo, seu resultado, seu fruto no sujeito, ou seja, a identificação do filho com o pai” (Lacan, (1999 [1958]), p. 191).

O ponto nodal do Édipo, cabe ainda dizer, é um ponto de ultrapassagem pela criança da situação de castração da mãe realizada pelo pai. “Na medida em que a criança não ultrapassa esse ponto nodal, isto é, não aceita a privação do falo na mãe, ela mantém em pauta - a correlação se fundamenta na estrutura - uma certa forma de identificação com o objeto da mãe, esse objeto que lhes apresento desde a origem como um objeto rival (…), e isso ocorre, quer se trate de fobia, de neurose ou de perversão” (Idem, p. 192).

Tomando-se o “ponto nodal do édipo” como ponto referencial pode-se, sugere Lacan, perguntar-se, diante de cada caso singular, sobre a configuração especial da relação com a mãe, com o pai e com o falo que faz com que a criança não aceite que a mãe seja privada, pelo pai, do objeto de seu desejo. “Em que medida, num dado caso, é preciso apontar que, em correlação com essa relação, a criança mantém sua identificação com o falo?”, interroga, pontuando que existem graus para essa relação, e que ela não é a mesma na neurose, na psicose e na perversão, muito embora deva se reconhecer que ela é nodal.

Nessa fase, a ser atravessada, o sujeito, no plano imaginário, é situado diante de uma “escolha” digna de uma tragédia shakespeariana: “to be or not to be”, “ser ou não ser” o falo. A palavra escolha está entre aspas porque o sujeito não é quem manipula as cordas do simbólico, muito embora exista, segundo Lacan, em termos neutros, uma alterativa entre ser ou não ser o falo.

Antes de ser ou não o falo, há o ter ou não ter o falo. Para ser o falo é preciso ter o falo e para ter o falo é preciso lidar com o complexo da castração. Por isso Lacan afirma que “ter ou não ter o pênis não são a mesma coisa”. Entre os dois, há o complexo de castração, regido por aquele que tem o direito de tê-lo, de modo que a possibilidade de ser castrado é essencial na assunção do fato de ter o falo. “Esse é um passo a ser transposto, e no qual tem de intervir, em algum momento, eficazmente, realmente, efetivamente, o pai” (Idem, p. 193).

O momento de intervenção eficaz do pai a que se refere Lacan é o “terceiro tempo do Édipo”. Recordemos, pois, o que vimos anteriormente: no primeiro tempo o sujeito se identifica especularmente com seu primeiro objeto: sua mãe. Essa é a etapa fálica primitiva, aquela em que a metáfora paterna age por si, uma vez que a primazia do falo já está instaurada no mundo pela existência do símbolo do discurso e da lei, ou seja, o pai na mãe. No segundo tempo do Édipo – o pai, no plano imaginário, intervém efetivamente como privador da mãe, o que significa que a demanda terá como endereço o Outro. O pai onipotente é aquele que priva a mãe. E, finalmente, o terceiro tempo do Édipo é aquele da reconciliação da criança com o pai-rival, momento de assumir sua sexualidade própria.

Cabe perguntar ainda sobre quais fatores tornariam o Édipo neurotizante? Não se pode deixar de evocar a influência dos pais reais, mas quais os critérios para avaliá-la? Lacan (2008 [1953]) afirmara que o patogênico é a discordância entre aquilo que o sujeito percebe do pai real e a função paterna simbólica. O problema é que esse tipo de discordância é inevitável, logo é inadequado atribuir a neurose apenas à influência dos pais. Nesse ponto a posição de Freud é salutar: a neurose deve-se à  “realidade psíquica”. 

Portanto, não é apenas ao pai e à mãe que o neurótico permanece apegado; é, mais amplamente, à situação original organizada por seu mito individual. Melman observa que essa situação é estruturada como um argumento e se repetirá por toda a vida, impondo-lhe vitórias ou fracassos, conforme as circunstâncias apresentadas. Assim, diz ele, “o real instalado na infância irá servir de modelo para todas as situações futuras”, (…) “a maneira pela qual o neurótico aborda o real mostra que ele reproduz, sem modificá-la, a situação do fracasso originário” (Melman apud Nusinovici, 1995, p.142).

A angústia de castração, para Lacan, indicaria que a operação normativa, que é a simbolização, realiza-se através do Édipo. A castração é resolvida pela linguagem que permite sua simbolização, atribuindo-a a uma exigência do pai (a função paterna simbólica). Simbolizada a castração, verifica-se normalmente a persistência de uma fixação ao pai. Nota-se aqui ecos do pensamento de Freud para quem o pai se revela como aquele que tem, como aquele que pode dar à mãe o que ela deseja e pode dar porque o possui. Intervém, portanto, a existência da potência no sentido genital da palavra, essa relação passa pelo plano do real, o pai é um pai potente. É a saída do complexo de Édipo. Essa identificação chama-se “Ichideal” (Ideal do eu).

Evidentemente há desfechos atípicos para as cenas edípicas. Lacan lembra do Pequeno Hans que, para encontrar um desfecho para seu Édipo, precisou, de seu cavalo pau-para-toda-obra a fim de suprir tudo o que lhe faltou no momento de virada, que não era outro senão a etapa da assunção do simbólico como complexo de Édipo. “Ele supriu isso, portanto, com aquele cavalo que era, ao mesmo tempo, o pai, o falo, a irmãzinha” (Idem, p. 196).

Enquanto estar preso a um argumento é uma característica da neurose, na psicose, por outro lado, não existe drama edípico que possa ser representado. Já na fobia, que é um momento anterior à neurose, existe a repetição de um elemento fobígeno, que se inscreve em um argumento. Quanto à perversão, ela se caracteriza por uma montagem imutável, que tem por finalidade dar acesso ao objeto, e que não atribui lugar, nem história, nem personagens específicos.

A essa altura já temos alguns elementos da teoria psicanalítica, para refletir, no plano clínico, sobre as questões que colocamos na abertura desse ensaio. Trata-se então de pensar o “ponto nodal do édipo” situado naquilo que o paciente leva para a análise, seus mitos, sua história edípica, e que não reconhece como tal. Entretanto, seu relato pode revelar ao analista que determinadas circunstâncias vividas se devem a uma situação mal resolvida na vivência do Édipo. Isso porque, situando-nos no plano das formações do Inconsciente, parece haver a possibilidade de que o sintoma possa coincidir com o ponto-nodal do Édipo de que fala Lacan, bem como com a falha de sua ultrapassagem no decorrer do Édipo. Conseguiria a clínica apontar com precisão o ponto-nodal a partir do sintoma? Chegaria a detectar o grau em que se deu esse nó, no atravessamento dos três tempos do Édipo?

Lacan, como sabemos, diz que o Sujeito do Inconsciente fala pelo Sintoma, que se revela no dito em análise. Se tomarmos o ponto-nodal como marca inconsciente, podemos então nos perguntar: ele é detectável na clínica, é passível de diagnóstico ou trata-se apenas de uma descrição teórica de um ponto no Inconsciente? Ao menos para Lacan, como vimos mais acima, a localização do ponto nodal do Édipo é um passo fundamental para um outro passo, que ele considera chave: o declínio do Édipo cujo fecho metafórico se encontraria na “identificação do filho com o pai” (Lacan, (1999 [1958]), p. 191).

IMAGEM:

Foto: Recorte da cena do filme "Spellbound" de Alfred Hitchcock

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

NUSINOVICI, Valentin. “Neurose”. In: CHEMAMA, Roland (Org.). Dicionário de Psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1995.

FREUD, Sigmund. “As resistências à psicanálise” (1925). In: Obras completas, volume 16 : O eu e o id, “autobiografia” e outros  textos (1923-1925). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

LACAN, Jacques. “Os três tempos do Édipo”. In: O seminário, livro 5: as formações do inconsciente (1957-1958). Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.

O mito individual do neurótico ou Poesia e verdade na neurose. Trad. Claudia Berliner. Rio de Janeiro: Zahar, 2008 (1953).

Elenice Milani

Criadora e escritora do site elenicemilani.com.br, Filósofa, Psicanalista Clínica, criadora e coordenadora do grupo Psicanálise e Literatura.


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