PSICANÁLISE & CINEMA “De Olhos bem Fechados” de Stanley Kubrick

Comentário sobre o filme “De Olhos Bem Fechados” Para quem assistiu e para quem ainda irá assistir.
“O cinema marca nossa época como domínio da cena. A Psicanálise nasce no mesmo momento que ele; delineando o campo do inconsciente, chamado por Freud de “Outra Cena”. Entre uma cena e aoutra cena, constrói-se uma memória. O que nos coloca a refletir sobre a ilusão e o que a rompe, pode em vertigem o mundo e o homem. Pois a arte desperta nele algo essencial, aquilo que a Psicanálise explora: o que o torna um Sujeito.
O filme “ De Olhos Bem Fechados”, de 1999, de Stanley Kubrick, está baseado no livro de Arthur Schnitzler, escritor austríaco contemporâneo de Freud, que muito o admirava.
O livro “Breve Romance de Sonho” 1926, tem uma estrutura ambígua e onírica onde realidade e sonho se confundem sem fronteiras definidas. O que faz com que muitas vezes não se saiba se os acontecimentos ocorridos são reais ou imaginários. Considerando como se fosse um sonho, vamos pensar o “Conteúdo manifesto”, que seria o enredo propriamente dito
O “Conteúdo Latente”, é o que vou priorizar como a sequência desta interpretação.
- A carta de Freud e Schnitzler encontrada por Elisabeth Roudinesco:
A morte, a sexualidade, a neurose, o monologo interior, o desenvolvimento da alma, o suicídio formavam em Schnitzler a trama de um impressionismo literário, ao qual Freud foi tao sensível que escreveu numa carta de 1926, o receio que lhe inspirava o encontro com o seu “duplo”.
“Vou lhe fazer uma confissão que peço guardar só para você, em consideração a mim, e não compartilhar com nenhum amigo nem estranho. Uma pergunta me atormenta: na verdade, por que, durante todos esses anos, nunca procurei frequentá-lo e conversar com você.......? Penso que o evitei por uma espécie de medo de me encontrar com meu duplo. Não que eu tenha tendência a me identificar facilmente com um outro ou que eu tenha desejado minimizar a diferença de talentos que nos separa, mas, ao mergulhar em suas esplêndidas criações, sempre pensei encontrar nelas, por trás da aparência poética, as hipóteses, os interesses e os resultados que se sabia serem meus”. Depois de observar que Schnitzler era, como ele, um investigador das profundezas psíquicas, Freud acrescentou: “Perdoe-me por recair na psicanálise, mas só sei fazer isso. Sei apenas que a psicanálise não é um meio para tornar-se amado”
“Duplo” está relacionado ao texto que Freud escreve em 1919, “O Estranho”.
- Retornando ao filme.
Um forte desejo sexual que a mulher demonstra, uma inesperada confissão tem um efeito devastador sobre o marido. A mulher não teria direito a sentir desejo ou sentir-se atraída por outro homem, o fato dela demonstrar-se desejosa o desestabiliza.
A partir desse momento, o marido entra num clima de alucinação, invadido por imagens da hipotética traição da mulher, e neste estado, passa por várias situações sexuais frustradas, até chegar à inesperada descoberta de uma sociedade secreta onde se praticam orgias sexuais ritualizadas.
Uma mulher o reconhece e recomenda que saia imediatamente dali pois sua vida corre perigo. Tenta fugir, mas não consegue.
Tal “sociedade secreta“ é frequentada por “grandes homens”, personalidades importantes. Atordoado volta para a mulher que o tranquiliza.
Considerando o “Conteúdo Manifesto”, vemos de imediato a extraordinária importância da sexualidade. É ela que move toda a trama. É o que desencadeia a crise do casal.
Leva a descoberta central e escandalosa de uma sociedade secreta frequentada pelos escalões do poder , esta sociedade secreta é a evidência mor da perversão e corrupção dos “grandes homens,” daqueles que deveriam ser os bastiões da moralidade pública. Estas orgias lembram um pouco os ritos e os emblemas dos altos dignitários da Igreja Católica. O baile de máscaras é um significante da hipocrisia geral. Quanto ao conflito do casal, Schnitzler mostra uma atitude radical ao defender a sexualidade feminina. A mulher do médico ao confessar sua fantasia, reivindica direitos iguais frente à vida sexual. Isso desestrutura o marido, impelindo-o a uma busca de reanimação sexual. Estando ele confuso e desorientado, a mulher se revela o elemento mais forte do casal. Diz que devem se considerar pessoas fortes por terem sobrevivido às próprias fantasias sexuais. Ao agir assim, procura integrar em suas consciências e na vida aquilo que até então estava cindido, negado, reprimido, ou projetado. Até aqui estamos interpretando o “Conteúdo Manifesto”.
Qual seria o “Conteúdo Latente” deste Sonho Novela? Seria na intensidade da reação do médico a confissão da mulher. Essa confissão tem uma clara conotação de mudança agressiva ciumenta, uma retaliação por ter a mulher se sentido traída na festa. A confissão atinge seus objetivos vingativos, causando uma imensa ferida narcísica no marido. Mas não só a ferida narcísica
explicaria isto. O que deixa claro a presença de um desejo próprio, até então ignorado pelo marido.
A ferida narcísica sofrida por ele tem uma consequência imediata, mais evidente e superficial. Ele sai e procura também uma vingança. Se a mulher pode traí-lo, ele se sente autorizado a fazer o mesmo. Essa ferida narcísica tem implicações mais profundas que o simples desejo de vingança: ao ouvir a confissão da mulher, o marido é envolvido pela sensação de “Estranho” das Unheimlich. Ele não pode reconhecer sua mulher naquela que lhe diz coisas tão inusitadas. Sua mulher que lhe era tão familiar parece uma estranha, uma mulher desconhecida. Esse estranhamento profundo, esse desencadear da evidência do estranhamento profundo familiar, do se deparar com algo simultaneamente familiar e estranho, são as impressões que o acompanham.
Como Freud diz: a emergência do desejo inconsciente, da fantasia reprimida, aparece quando algo que deveria permanecer oculto vem à luz.
Para o marido, é o reprimido que retorna invocado pela fala da mulher. Ao saber das fantasias eróticas dela, ele é invadido por fortes sentimentos de ciúmes e de exclusão e regride, reatualizando naquele momento dolorosas vivências do passado ligadas a sua sexualidade infantil, a descoberta da sexualidade infantil, à descoberta da sexualidade da mãe, dos pais, dos adultos, sexualidade da qual está irremediavelmente excluído. Assim podemos entender toda a sequência de alucinação noturna que dá seguimento a ação do personagem.
O encontro com a filha do paciente.
Com a prostituta.
Com a adolescente da loja.
Com o baile de máscaras.
Com a sociedade secreta.
Sequência que se desenrola dentro de um clima totalmente marcado pela estranheza, pelo das Unheimlich, e onde a sexualidade impera.
Assim ele deu-se conta dos desejos sexuais de uma mulher, da mesma forma descobre que há uma sociedade secreta onde os “grandes homens” têm suas práticas sexuais. Ele fica tão obcecado com a imagem da “mulher mãe” tendo relações sexuais, quanto com a descoberta da sociedade secreta. É como a criança que descobre que os pais têm vida sexual, que os adultos todos têm vida sexual. Sob o prisma infantil, efetivamente existe uma “Sociedade Secreta” sexual, da qual ela não tinha conhecimento e estava excluído, situação na qual encontra-se toda a criança. A cena da orgia ritual na sociedade secreta é uma representação onírica da cena primária, do coito entre os pais, objeto de grande apelo voyeurístico. O marido tenta participar, mas é reconhecido e impedido. Sua expulsão da orgia onde estão os “grandes homens”, entenda-se: dolorosa castração, da exclusão necessária frente ao coito paterno. Os vários episódios que circunscrevem a orgia e a sociedade secreta, que envolvem agressões, violências, ataques, assassinatos são representações do clima estranho, mesclado de sexualidade e violência, que é próprio das versões infantis da cena primária, das fantasias edipianas mais arcaicas. A ligação entre a confissão da mulher e a regressão que o marido faz, onde por duas vezes as vivências de estranheza experimentadas pelo personagem são referidas à figura de sua mãe, à sua morte.
Primeiro, diz respeito ao momento em que é assediado pela filha cujo pai está no leito de morte. Tal fato o faz lembrar-se de um caso no qual um adolescente que velava o corpo da mãe foi seduzido ali mesmo pela amiga da mãe que veio para o velório.
Segundo, é quando chega exausto em casa depois de ter sido expulso da orgia e sua mulher lhe conta um sonho que evoca o que ele tinha acabado de vivenciar. Constata então que não dormia há muitas horas e recorda que uma única vez sentia-se assim antes, justamente no dia do velório de sua mãe.
No momento em que toma conhecimento de que sua mãe tem uma vida sexual, momento este reatualizado com a confissão da mulher; ele perde a fantasia da posse exclusiva da mãe.
Nesse sentido, a mãe “morre” ou é assassinada por ele em função de seu ódio ciumento edipiano. Mas de certa forma, recupera a mãe boa na figura da mulher mascarada que o avisa do perigo que corre e que se oferece para ser sacrificada em seu lugar.
Ao ser condenado por presenciar a cena primária, ele escapa pelo sacrifício da mulher. É como se, desta forma, ainda tentasse se imiscuir no coito paterno, entendendo-o como um sacrifício que a mãe faz para salvá-lo, submetendo-se a castração realizada pelo pai. Para ele os pais não estão tendo uma prazerosa relação sexual da qual está excluído. Na verdade, a mãe se submete ao sadismo do pai para salvá-lo. É uma forma de manter, de tentar manter, sua relação amorosa exclusiva com a mãe.
A sensação de estranheza está presente em todo o visual do filme. Kubrick consegue a proeza de colocar a Viena de quase um século atrás na Nova York de hoje. Kubrick consegue entender a atualidade do enredo de Schnitzler. Lembremos que vivemos hoje um momento de grande liberação dos costumes, onde a repressão
social sobre o sexo é infinitas vezes mais leve do que era na Viena de Schnitzler. O importante é pensar que o sexo hoje é o que mostram as fitas pornográficas, um mero e incansável exercício aeróbico, que nada exige além de preparo físico.
Ao retomar Schnitzler, Kubrick nos lembra que a sexualidade humana está revestida por uma dimensão simbólica que a afasta da mera animalidade instintiva.
Na Viena fin-de-siecle, em Nova York hoje, em qualquer lugar do mundo, em qualquer época, os relacionamentos amorosos através dos quais se expressa a sexualidade humana são complexos e difíceis, determinados que são pela fantasia e pelo desejo inconsciente.
-É verdade que os costumes sociais mudam no tempo, mas as estruturas psíquicas não desaparecem e os conflitos entre o desejo inconsciente e a cultura permanecem. O que muda é a expressão sintomática destes conflitos.
Se na Viena fin-de-siecle a histérica poderia desmaiar ao ouvir a palavra “pênis”, a histérica de hoje em Nova York tem vida sexual livre. Mas continua tão frígida quanto sua irmã que vivia há cem anos em Viena.
O acesso ao prazer continua sendo um árduo e difícil trajeto a ser penosamente descoberto por cada um.
Schnitzler mostra uma “mulher mãe”, na sua busca pelo feminino, com desejos sexuais tão fortes quanto os do homem. O que evoca certo escândalo é algo estranho na Viena de quase cem anos atrás. Kubrick, ao mostrar a mesma história hoje, será que provocará reações muito diferentes daquelas suscitadas por Schnitzler?
“O cinema marca nossa época como domínio da cena. A Psicanálise nasce no mesmo momento que ele; delineando o campo do inconsciente, chamado por Freud de “Outra Cena”. Entre uma cena e aoutra cena, constrói-se uma memória. O que nos coloca a refletir sobre a ilusão e o que a rompe, pode em vertigem o mundo e o homem. Pois a arte desperta nele algo essencial, aquilo que a Psicanálise explora: o que o torna um Sujeito.
O filme “ De Olhos Bem Fechados”, de 1999, de Stanley Kubrick, está baseado no livro de Arthur Schnitzler, escritor austríaco contemporâneo de Freud, que muito o admirava.
O livro “Breve Romance de Sonho” 1926, tem uma estrutura ambígua e onírica onde realidade e sonho se confundem sem fronteiras definidas. O que faz com que muitas vezes não se saiba se os acontecimentos ocorridos são reais ou imaginários. Considerando como se fosse um sonho, vamos pensar o “Conteúdo manifesto”, que seria o enredo propriamente dito
O “Conteúdo Latente”, é o que vou priorizar como a sequência desta interpretação.
- A carta de Freud e Schnitzler encontrada por Elisabeth Roudinesco:
A morte, a sexualidade, a neurose, o monologo interior, o desenvolvimento da alma, o suicídio formavam em Schnitzler a trama de um impressionismo literário, ao qual Freud foi tao sensível que escreveu numa carta de 1926, o receio que lhe inspirava o encontro com o seu “duplo”.
“Vou lhe fazer uma confissão que peço guardar só para você, em consideração a mim, e não compartilhar com nenhum amigo nem estranho. Uma pergunta me atormenta: na verdade, por que, durante todos esses anos, nunca procurei frequentá-lo e conversar com você.......? Penso que o evitei por uma espécie de medo de me encontrar com meu duplo. Não que eu tenha tendência a me identificar facilmente com um outro ou que eu tenha desejado minimizar a diferença de talentos que nos separa, mas, ao mergulhar em suas esplêndidas criações, sempre pensei encontrar nelas, por trás da aparência poética, as hipóteses, os interesses e os resultados que se sabia serem meus”. Depois de observar que Schnitzler era, como ele, um investigador das profundezas psíquicas, Freud acrescentou: “Perdoe-me por recair na psicanálise, mas só sei fazer isso. Sei apenas que a psicanálise não é um meio para tornar-se amado”
“Duplo” está relacionado ao texto que Freud escreve em 1919, “O Estranho”.
- Retornando ao filme.
Um forte desejo sexual que a mulher demonstra, uma inesperada confissão tem um efeito devastador sobre o marido. A mulher não teria direito a sentir desejo ou sentir-se atraída por outro homem, o fato dela demonstrar-se desejosa o desestabiliza.
A partir desse momento, o marido entra num clima de alucinação, invadido por imagens da hipotética traição da mulher, e neste estado, passa por várias situações sexuais frustradas, até chegar à inesperada descoberta de uma sociedade secreta onde se praticam orgias sexuais ritualizadas.
Uma mulher o reconhece e recomenda que saia imediatamente dali pois sua vida corre perigo. Tenta fugir, mas não consegue.
Tal “sociedade secreta“ é frequentada por “grandes homens”, personalidades importantes. Atordoado volta para a mulher que o tranquiliza.
Considerando o “Conteúdo Manifesto”, vemos de imediato a extraordinária importância da sexualidade. É ela que move toda a trama. É o que desencadeia a crise do casal.
Leva a descoberta central e escandalosa de uma sociedade secreta frequentada pelos escalões do poder , esta sociedade secreta é a evidência mor da perversão e corrupção dos “grandes homens,” daqueles que deveriam ser os bastiões da moralidade pública. Estas orgias lembram um pouco os ritos e os emblemas dos altos dignitários da Igreja Católica. O baile de máscaras é um significante da hipocrisia geral. Quanto ao conflito do casal, Schnitzler mostra uma atitude radical ao defender a sexualidade feminina. A mulher do médico ao confessar sua fantasia, reivindica direitos iguais frente à vida sexual. Isso desestrutura o marido, impelindo-o a uma busca de reanimação sexual. Estando ele confuso e desorientado, a mulher se revela o elemento mais forte do casal. Diz que devem se considerar pessoas fortes por terem sobrevivido às próprias fantasias sexuais. Ao agir assim, procura integrar em suas consciências e na vida aquilo que até então estava cindido, negado, reprimido, ou projetado. Até aqui estamos interpretando o “Conteúdo Manifesto”.
Qual seria o “Conteúdo Latente” deste Sonho Novela? Seria na intensidade da reação do médico a confissão da mulher. Essa confissão tem uma clara conotação de mudança agressiva ciumenta, uma retaliação por ter a mulher se sentido traída na festa. A confissão atinge seus objetivos vingativos, causando uma imensa ferida narcísica no marido. Mas não só a ferida narcísica
explicaria isto. O que deixa claro a presença de um desejo próprio, até então ignorado pelo marido.
A ferida narcísica sofrida por ele tem uma consequência imediata, mais evidente e superficial. Ele sai e procura também uma vingança. Se a mulher pode traí-lo, ele se sente autorizado a fazer o mesmo. Essa ferida narcísica tem implicações mais profundas que o simples desejo de vingança: ao ouvir a confissão da mulher, o marido é envolvido pela sensação de “Estranho” das Unheimlich. Ele não pode reconhecer sua mulher naquela que lhe diz coisas tão inusitadas. Sua mulher que lhe era tão familiar parece uma estranha, uma mulher desconhecida. Esse estranhamento profundo, esse desencadear da evidência do estranhamento profundo familiar, do se deparar com algo simultaneamente familiar e estranho, são as impressões que o acompanham.
Como Freud diz: a emergência do desejo inconsciente, da fantasia reprimida, aparece quando algo que deveria permanecer oculto vem à luz.
Para o marido, é o reprimido que retorna invocado pela fala da mulher. Ao saber das fantasias eróticas dela, ele é invadido por fortes sentimentos de ciúmes e de exclusão e regride, reatualizando naquele momento dolorosas vivências do passado ligadas a sua sexualidade infantil, a descoberta da sexualidade infantil, à descoberta da sexualidade da mãe, dos pais, dos adultos, sexualidade da qual está irremediavelmente excluído. Assim podemos entender toda a sequência de alucinação noturna que dá seguimento a ação do personagem.
O encontro com a filha do paciente.
Com a prostituta.
Com a adolescente da loja.
Com o baile de máscaras.
Com a sociedade secreta.
Sequência que se desenrola dentro de um clima totalmente marcado pela estranheza, pelo das Unheimlich, e onde a sexualidade impera.
Assim ele deu-se conta dos desejos sexuais de uma mulher, da mesma forma descobre que há uma sociedade secreta onde os “grandes homens” têm suas práticas sexuais. Ele fica tão obcecado com a imagem da “mulher mãe” tendo relações sexuais, quanto com a descoberta da sociedade secreta. É como a criança que descobre que os pais têm vida sexual, que os adultos todos têm vida sexual. Sob o prisma infantil, efetivamente existe uma “Sociedade Secreta” sexual, da qual ela não tinha conhecimento e estava excluído, situação na qual encontra-se toda a criança. A cena da orgia ritual na sociedade secreta é uma representação onírica da cena primária, do coito entre os pais, objeto de grande apelo voyeurístico. O marido tenta participar, mas é reconhecido e impedido. Sua expulsão da orgia onde estão os “grandes homens”, entenda-se: dolorosa castração, da exclusão necessária frente ao coito paterno. Os vários episódios que circunscrevem a orgia e a sociedade secreta, que envolvem agressões, violências, ataques, assassinatos são representações do clima estranho, mesclado de sexualidade e violência, que é próprio das versões infantis da cena primária, das fantasias edipianas mais arcaicas. A ligação entre a confissão da mulher e a regressão que o marido faz, onde por duas vezes as vivências de estranheza experimentadas pelo personagem são referidas à figura de sua mãe, à sua morte.
Primeiro, diz respeito ao momento em que é assediado pela filha cujo pai está no leito de morte. Tal fato o faz lembrar-se de um caso no qual um adolescente que velava o corpo da mãe foi seduzido ali mesmo pela amiga da mãe que veio para o velório.
Segundo, é quando chega exausto em casa depois de ter sido expulso da orgia e sua mulher lhe conta um sonho que evoca o que ele tinha acabado de vivenciar. Constata então que não dormia há muitas horas e recorda que uma única vez sentia-se assim antes, justamente no dia do velório de sua mãe.
No momento em que toma conhecimento de que sua mãe tem uma vida sexual, momento este reatualizado com a confissão da mulher; ele perde a fantasia da posse exclusiva da mãe.
Nesse sentido, a mãe “morre” ou é assassinada por ele em função de seu ódio ciumento edipiano. Mas de certa forma, recupera a mãe boa na figura da mulher mascarada que o avisa do perigo que corre e que se oferece para ser sacrificada em seu lugar.
Ao ser condenado por presenciar a cena primária, ele escapa pelo sacrifício da mulher. É como se, desta forma, ainda tentasse se imiscuir no coito paterno, entendendo-o como um sacrifício que a mãe faz para salvá-lo, submetendo-se a castração realizada pelo pai. Para ele os pais não estão tendo uma prazerosa relação sexual da qual está excluído. Na verdade, a mãe se submete ao sadismo do pai para salvá-lo. É uma forma de manter, de tentar manter, sua relação amorosa exclusiva com a mãe.
A sensação de estranheza está presente em todo o visual do filme. Kubrick consegue a proeza de colocar a Viena de quase um século atrás na Nova York de hoje. Kubrick consegue entender a atualidade do enredo de Schnitzler. Lembremos que vivemos hoje um momento de grande liberação dos costumes, onde a repressão
social sobre o sexo é infinitas vezes mais leve do que era na Viena de Schnitzler. O importante é pensar que o sexo hoje é o que mostram as fitas pornográficas, um mero e incansável exercício aeróbico, que nada exige além de preparo físico.
Ao retomar Schnitzler, Kubrick nos lembra que a sexualidade humana está revestida por uma dimensão simbólica que a afasta da mera animalidade instintiva.
Na Viena fin-de-siecle, em Nova York hoje, em qualquer lugar do mundo, em qualquer época, os relacionamentos amorosos através dos quais se expressa a sexualidade humana são complexos e difíceis, determinados que são pela fantasia e pelo desejo inconsciente.
-É verdade que os costumes sociais mudam no tempo, mas as estruturas psíquicas não desaparecem e os conflitos entre o desejo inconsciente e a cultura permanecem. O que muda é a expressão sintomática destes conflitos.
Se na Viena fin-de-siecle a histérica poderia desmaiar ao ouvir a palavra “pênis”, a histérica de hoje em Nova York tem vida sexual livre. Mas continua tão frígida quanto sua irmã que vivia há cem anos em Viena.
O acesso ao prazer continua sendo um árduo e difícil trajeto a ser penosamente descoberto por cada um.
Schnitzler mostra uma “mulher mãe”, na sua busca pelo feminino, com desejos sexuais tão fortes quanto os do homem. O que evoca certo escândalo é algo estranho na Viena de quase cem anos atrás. Kubrick, ao mostrar a mesma história hoje, será que provocará reações muito diferentes daquelas suscitadas por Schnitzler?
IMAGEM:
Foto: Filme "De Olhos bem Fechados" 1999 com direção de Stanley Kubrick.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Freud, Sigmund - Texto - O Estranho -1919
Telles, Sérgio - Livro - O Psicanalista Vai Ao Cinema
Schnitzler, Arthur - Livro - Um Breve Romance Sonho
Rivera, Tania - Cinema, Imagem, e Psicanálise
Análise maravilhosa
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