Em Busca do Objeto Perdido

Lucas LPM

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De todas as formas de produção do amor, de todos os agentes de disseminação do mal sagrado, um dos mais efetivos é esse turbilhão agitado que por vezes passa por nós. Então o ser com que nos divertimos nesse instante – a sorte está lançada – há de ficar sendo a pessoa amada... Nem há necessidade que até aquele momento nos tenha agradado mais que as outras. Precisava era que o nosso gosto por ela se tornasse Exclusivo. E semelhante condição se realiza quando – no momento em que ela nos fez falta - a busca de prazeres que sua convivência nos trazia é de repente substituída em nós por uma necessidade angustiosa, que tem por objeto essa mesma pessoa, uma necessidade absurda, que as leis deste mundo tornam de satisfação impossível e de difícil cura: a precisão insensata e dolorosa de possuí-lo. (Marcel Proust)
O termo Libido é familiar ao discurso corrente, repetido vez por outra pelas pessoas , na ilusão de saber com clareza do que se trata. O fato de ser usado pelos médicos, de ser encontrado nas bulas de remédios que se propõem a diminui-la ou aumenta-la , sugerindo questões hormonais, de “funcionamento fisiológico” e outras, derivam do sentido comum de “desejo sexual” .De origem latina , o termo Libido tem essa conotação, no senso comum ou na terminologia médica.Concebida pela psicanálise, designa a energia potencial das pulsões, e criou controvérsias entre seus adeptos. Mas, para Freud, a Libido é “a energia da pulsão sexual”. É dita “Libido do Ego”, quando investida pelo sujeito em si mesmo; este fenômeno, observado por Freud em seu estudo sobre o Narcisismo, é marcante em certos processos psicóticos, como exaltação do Ego no delírio de grandeza. É chamada “Libido de objeto”, quando vista como relação do Ego com objetos - o outro- exteriores.(Dictionaire de Psychanalyse- Pierre Fedida- Larousse – Paris-1974, pg. 170)

Lacan, em seu seminário XI, inicia o capítulo “Do Amor à Libido” dizendo: “A Libido não é algo fugaz, de fluido, ela não se reparte, nem se acumula, como um magnetismo, nos centros de focalização que lhe oferece o sujeito; a libido deve ser concebida como um órgão, nos dois sentidos do termo:órgão-parte do organismo e órgão-instrumento.” Assim, pode-se entender que um órgão seja investido pela libido.

Lacan dá seguimento ao texto, contestando a idéia de um Ics obscuro, como a caverna de Platão, servindo-se de outra metáfora . Um balão de gás cheio, no qual se inserisse uma lâmpada, serviria de lanterna, ainda que demorasse a acender. Segundo ele, assim funciona o Inconsciente no sujeito, como uma alternância, uma pulsação.Nessa pulsação, só apreendemos as pulsões parciais, pois, o todo da pulsão sexual não está aí representado.

Essa observação introduz a questão sobre a localização da pulsão genital. Ela está no campo do Outro, conclui ele. É no Outro que ele procura a metade de si, mas com a intenção narcisista de “amar-se amado”.

Lacan coloca como patente uma conclusão de Freud: as pulsões parciais estão dissociadas do amor, não são a mesma coisa.

Ora, se existe uma pulsão genital, ela não é articulada com outras pulsões. Ela está submissa a estruturas elementares, circulantes no complexo de Édipo. Não se situa em nenhuma parte determinada do sujeito, mas, é difusa nele, como propunha Freud. Já para conceber o amor é preciso referir-se a uma estrutura diferente da que tem a pulsão.

Há um momento do texto, referido como o “mito da lâmina”, em que Lacan propõe que se imagine um ovo, óvulo, do qual se poderia fazer um homem ou um “homelete”, diz com humor. No momento em que o ovo se rompe, ou seja, a membrana que envolve o feto se rompe, para que venha à vida um novo ser, imagine-se que algo se volatiliza, perde-se: a lâmina. Ao deixar o meio aquoso em que se desenvolveu, o ser sofre uma perda que não é de nenhuma parte de si, nada que devesse ser conservado ou excluído. O que o ser sexuado perde na sexualidade pode ser comparado com uma ameba, porque sobrevive a qualquer divisão cissípara. Essa lâmina, esse órgão que, entretanto, não existe, é a libido, enquanto vida, que dispensa qualquer outro órgão. É um equivalente do “objeto a” e seus representantes. A placenta pode ser representante desse objeto perdido.

Lacan chama o objeto perdido de “objeto a”; diz que são dessa ordem os objetos que representam a libido, enquanto pulsão de vida, simplificada e indestrutível, subtraído ao vivo pelo fato de que esteja submetido ao ciclo de reprodução sexuada.A relação ao outro é, em resumo, o que representa a lâmina, a relação do sujeito vivo com aquilo que ele perde, por ter que passar pela reprodução. No nascimento o sujeito, que antes não era nada, coagula-se, torna-se significante e por isso nasce dividido. Daí que procure no outro uma complementação para a totalidade sexual, em uma busca dessa perda, que não houve, da libido.Diz Lacan que é, precisamente o órgão da libido que liga ao inconsciente as pulsões parciais, pelo privilégio de não se poder fechar.

Para entender o que é dito “objeto perdido” são necessárias as noções de necessidade, demanda e separação.(Alain de Juranville – Lacan e a filosofia – pg. 81 e seguintes)

Lacan parte da necessidade como dado biológico. O objeto da necessidade é, antecipadamente, vazio ou esvaziado, para e pelo próprio sujeito. Ela decorre em um “tempo imaginário”. Constitui-se essencialmente da “falta”, que só o objeto real pode suprir...aqui e agora.

Assim, o recém nascido só tem necessidade: do seio principalmente e do alívio de seus desconfortos. O aleitamento é uma experiência real da satisfação de uma necessidade.

Mas, no mundo humano, essa ordem das necessidades é atravessada pela linguagem, no que é chamado demanda. Quando o bebê percebe que o simples choro propicia a presença da mãe, ele já transformou a necessidade em demanda.

Para Lacan o vínculo da alienação da necessidade à dependência biológica não importa. Ele não a nega, mas dá prioridade ao efeito da intervenção da linguagem. Diz:

"Examinemos os efeitos dessa presença [ o significante]. Eles são, em primeiro lugar, os de um desvio das necessidades do ser, devido ao fato de que ele fala; tão logo suas necessidades estejam sujeitadas á demanda, retornam a ele alienadas. Isso não é efeito de sua dependência real (pois, não cremos encontrar aí a concepção parasita, que é a concepção da dependência na teoria da neurose), mas sim da colocação em forma significante, como tal. (Escritos, pg. 690)

Manifestando-se na linguagem a demanda universaliza a necessidade. Por outro lado, ela se dirige àquele que pode satisfazer a necessidade. A mediação da linguagem não pode ser dissociada da mediação do outro. A satisfação das pretensas necessidades pela mediação do outro, torna-se signo do amor, algo visado pela demanda; o objeto particular tomou outro sentido: já não vale pela simples satisfação da necessidade. A demanda é o que introduz no registro do imaginário a idéia de onipotência; o outro é dono do objeto requerido. Também o sujeito é onipotente e possuidor de um mundo. Daí que exista na demanda uma ignorância da falta. A demanda nega essa falta.

Assim surge o desejo, como aquilo que é subtraído à demanda: a falta.. O desejo introduz nova dimensão ao real da necessidade e ao imaginário da demanda: o simbólico da falta.

“O que importa, diz Lacan é o ato da fala. É aí que se encontra o desejo.”

Mas, Lacan aborda outro fenômeno que intervém no processo: a alienação põe em destaque a oposição constante entre os campos do Eu e do Outro É no campo do Outro que se situa a cadeia significante, que vai permitir tornar-se presente tudo quanto pertence ao sujeito: a subjetividade viva e a pulsão essencialmente.. No plano biológico essa pulsão é fácil de ser percebida. No psiquismo não há inscrição de gênero: macho ou fêmea, Freud já o afirmara Essas polaridades são representadas como atividade e passividade. Só a pulsão é representante, no psiquismo, das conseqüências da sexualidade, que se instaura no campo do outro como sujeito, como falta. A sexualidade se representa no sujeito por projeção. Ela retoma a falta real, perdida pelo sujeito, por sua condição de sexuado, o que lhe exige uma complementação, o outro.

Pelo mito da lâmina, Lacan dá maior importância á Libido , postulando-a como um órgão irreal, mas essencial à compreensão da natureza da pulsão. Esse órgão irreal tem a conotação de uma tatuagem e uma função erótica, que só pode variar em intensidade.

À afirmação “Estou sem libido”, pode-se contestar teoricamente. Ernest Jones criou para o desaparecimento da libido a noção de afânise. Depreendemos que, sem libido, o sujeito deixa de sê-lo : esse desaparecimento é letal. Lacan chamou a isso fading .

Para falar da “função topológica da borda”, Lacan criou o símbolo de um losango, a punção e a noção de vel, correspondente a ou, para traduzir a alienação, onde se está sempre um pouco. Esse vel condena o sujeito a só aparecer nessa divisão que coloca de um lado o ser e do outro o sentido. “Ou isso ou aquilo” diria Cecília Meireles; o vel impõe uma escolha, pois reúne elementos de um lado e de outro e outros que servem, ou não, aos dois lados. A interseção dos dois círculos do esquema topológico marca o recobrimento de duas faltas, uma se superpondo à outra, aí onde Lacan aponta a dialética do desejo: uma falta engendrada em um tempo anterior recobre a falta do tempo seguinte.

A via, através da qual o sujeito encontra o retorno do vel da alienação é chamada separação.

É em seu primeiro Outro, sua mãe, que o sujeito constrói o seu desejo, pela projeção do que é desejo dela. Na ultrapassagem do desejo da mãe, em um efeito de torção, ele afirma o seu próprio, e retorna do ponto inicial da sua falta, como tal, da falta da sua afânise. (Lacan, sem. XI, pgs. 193 a 217)

É pelo conhecimento do desejo que percebemos que a falta consiste no objeto perdido.

Fala-se, implicitamente, do objeto, a cada vez que entra em jogo a noção de realidade. Por outro lado, também do momento em que o sujeito se faz objeto para o outro e o outro se torna seu objeto. Há aí uma relação de reciprocidade.

Freud já se referia ao objeto nos Três Ensaios e no Projeto. Disse que Toda maneira para o homem encontrar o objeto é, e não passa disso, a continuação de uma tendência, onde se trata de um objeto perdido, a ser reencontrado, objeto que foi o ponto de ligação das primeiras satisfações da criança.

Uma nostalgia liga o sujeito ao objeto perdido e, pela repetição, ele se empenha na busca do mesmo e só consegue encontrar um outro objeto.

Da leitura “Em busca do tempo perdido”, de Proust, mais especificamente da história de Swann, me veio a idéia de falar sobre o “objeto perdido”, pois, consigo identificar ali os conceitos teorizados acima.Aliás, Fernando Py diz na contracapa do primeiro volume que o autor e seus personagens estão envoltos em uma atmosfera de análises psicológicas, minuciosas e implacáveis. Swann, personagem de Proust, era um aristocrata, elegante, refinado e mulherengo, como convinha aos moços bem dotados de sua época., nem tão moço que não estivesse cansado dos salões de elite.Em um teatro, um amigo lhe apresentou Odette de Crécy,. A moça era um tanto medíocre e não correspondia ao padrão de mulher que admirava.

Ele sim, impressionou Odette, que começou a visitá-lo dizendo interessar-se pelo seu trabalho com pinturas. Depois de umas poucas visitas, convidou-o para uma reunião em casa dos Verdurin, um casal muito liberal nas maneiras, estranhas para Swann.

Foi no salão dos mesmos que, após se deslumbrar com uma música para piano, o rapaz estendeu essa fascinação para Odette, em quem passou a ver os encantos que negara na apresentação dos dois. Acostumou-se a leva-la para casa, ao fim dos saraus que se repetiram. Um dia foi convidado a entrar, para um chá, no exotismo da decoração chinesa da casa de Odette.

À saída pensaria: -“ Como seria agradável ter assim uma pessoa, em cuja casa se pudesse encontrar essa coisa rara: um chá.” Encantava-se com o ambiente diferente dos salões de luxo. Ali voltaria. Sempre que ia vê-la sentia uma necessidade de imaginar-lhe o rosto belo, como não era. Criar uma fantasia de beleza , valorizar o seu objeto, era necessário. Foi preciso associá-la a uma pintura de Botticelli para despertar em si uma atração física, um desejo do seu corpo. Odette, entretanto, jogava com sua sedução, fazendo-o acreditar que as iniciativas eram dele .

Pela primeira vez Swann se deu conta de sua alienação incipiente , quando se atrasou ao encontro na casa dos Vendurin e não encontrou Odette, que deixara um recado de que estaria em certo restaurante, onde não fora de fato. Uma busca desesperada pelos restaurantes de Paris deu-lhe a dimensão do quanto estava ligado a ela. “... o que se fazia agora invariável era que, onde quer que se achasse, Swann não deixava de se juntar a Odette. ... era como que o próprio declive, irresistível e rápido de sua vida.”, diria Proust.

Logo não disfarçava mais e beijava Odette diante do cocheiro que o conduzia: “ Que importam os outros?”. Desde que se apaixonara , encontrava um charme nas coisas, atribuindo à amada esse poder de resgatar-lhe as inspirações da juventude. Investia libidinalmente o seu objeto.

Ás vezes achava que a conhecera anteriormente, como cortesã e a reencontrara : como seu objeto perdido, era idealmente desejada. Ela respondia com um interesse insuspeito pelo seu trabalho de estudioso de pinturas. Ante Vermeer ou Wateau, sugeria a inspiração de alguma mulher para os pintores famosos. Insinuava-se assim. Prendia-o numa demanda de si.

Negando-se a freqüentar a mesma sociedade que o amante, fazia convergir sua atenção toda para ela mesma. Dissuadiu-o de freqüentar os lugares costumeiros, enquanto estimulava o convívio com os Verdurin. Como em toda paixão, Swann se alienava inteiro em Odette, seu Outro.

Ao presenteá-la muito, pretendia fazer-se lembrar constantemente e ao prestar-lhe alguma ajuda financeira, visava tornar-se imprescindível.

Swann costumava, vez por outra, aproveitar os ares bucólicos de sua propriedade em Combray. Agora se sentia pregado a Paris pela simples presença de Odette ali. Só podia pensar nela. “Nem mesmo sabia se sentira o odor das folhas ou se houvera luar.”

A esta altura Swann estava vulnerável ao ciúme. Um dia, como Odette não lhe viesse trazer à porta de saída, começou a suspeitar que ela esperasse alguém. Voltou do meio do caminho à casa de Odette e colocou-se sob uma janela. Alucinou uma conversa entre um casal. Hesitou muito, mas acabou por bater à janela. Supunha estar descobrindo o outro lado da vida de Odette, que ignorava. Mas foi um casal de velhos que apareceu. Ele, que tão bem conhecia a casa da amada, batera na janela errada.

O ciúme passou a persegui-lo como uma sombra do amor. Acreditava que todas as manifestações de afeto que recebia eram repetidas com outros.Atendendo a um pedido de Odette para postar umas cartas, desconfiou de um endereço e abriu a carta e, apesar de não ter encontrado nada demais, passou a imaginar situações.

Swann passou a se distanciar dos Vendurin, enquanto estes se empenhavam em um movimento recíproco. Odette passou a viajar com os amigos para temporadas fora de Paris. Discretamente, ela se afastava dele também. Seu controle a irritava.

Swann passou a alucinar sua presença, em lugares onde ela não estava De repente, pensamentos de morte pareciam-lhe naturais : Swann descobria que o amor de Odette não renasceria mais. Descobriu também que havia um caso entre ela e a Sra. Verdurin e que Odette freqüentava bordéis. Suas descobertas concorreram para um desenvestimento gradual de Odette, enquanto objeto. Ao final a sua frase: “-E dizer que desperdicei anos de minha vida, que desejei morrer, que vivi meu maior amor, por uma mulher que não me agradava, que não fazia o meu tipo.”, não era motivada pelo despeito, mas pela constatação de que se iludira.

Nessa paixão alienante, descrita por Proust, percebi como que uma busca do objeto perdido, ilusório e inútil porque, de fato, ele nunca existiu.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FEDIDA, Pierre – Dictionnaire de la Psychanalyse – Larousse – Paris - 1974

JURANVILLE, Alain de – Lacan e a filosofia - Jorge Zahar Editora – Rio de Janeiro – 1987

LACAN, Jacques – O Seminário – vols.. 4,5,11 – Zahar Editora – Rio de Janeiro

PROUST, Marcel – Em busca do tempo perdido- No caminho de Swann – Ediouro


IMAGEM:

Foto: Maurice ROUGEMONT/Getty Images

Elenice Milani

Criadora e escritora do site elenicemilani.com.br, Filósofa, Psicanalista Clínica, criadora e coordenadora do grupo Psicanálise e Literatura.


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