PSICANÁLISE & CINEMA “Bohemian Rhapsody” de Bryan Singer

Lucas LPM

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Segundo o filósofo Immanuel Kant "gênio é o talento (dom natural) que dá a regra à arte" e por isso "originalidade" é sua primeira propriedade. Além dela, os produtos do gênio são, segundo Kant, extravagantes, verdadeiras criações, modelos e não imitações. E, por fim, o gênio é uma força da natureza tanto que pode acontecer dele próprio não conseguir descrever ou indicar como ele realiza sua produção. Originalidade, extravagância criativa, força da natureza. Aí está aquele que tem "a inata disposição de ânimo (ingenium) pela qual a natureza se expressa artisticamente". Ora talvez possamos ver em Freddie Mercury um gênio da era moderna (ou mesmo pós-moderna) tal qual aqueles que o filósofo Kant, tão apreciado por Freud, observou no século XVIII.

Farrokh Bulsara, nasceu no dia 5 de setembro de 1946 na Cidade de Petra um Arquipélago em Zanzibar (hoje Tanzânia), leste da África. Seus pais, Bomi e Jer Bulsara, eram indianos. Aos oito anos embarcou para a Índia onde ingressou na St.Peter Boarding School em Mumbai. Neste internato de elite passou a ser chamado de Freddie pelos colegas. Já grande apreciador de música, e influenciado pela cantora local Lata Mangeshkar, começou a ter aulas de piano. Aos 12 anos montou sua primeira banda: The Hectics. Apesar de ser apreciado pelos mais velhos pelo carisma e talento musical, o garoto sofria bullying por parte de outras crianças devido a sua personalidade afeminada, o que o levou a se tornar uma pessoa introspectiva e muito tímida quando perto de estranhos. Nessa época, a ópera passou a ser uma grande influência e continuaria presente em sua criação musical futura.

Aos 17 anos, muda com a família para a Inglaterra por conta de uma revolução em sua terra natal e da perseguição a não árabes que ali acontece. Na pequena cidade de Middlesex inicia seus estudos em artes na escola Politécnica Isleworth. Sendo diplomado como designer gráfico na Ealing Art College. Nesta época, faz amizade com Tim Staffell, vocalista da banda Smile e, logo após se graduar, conhece Mary Austin, sua namorada, no famoso mercado Kensington onde foi trabalhar como vendedor de roupas. O encontro com esta mulher que se torna alguém muito importante em sua vida mistura os sentimentos de “amor e desejo”, que ainda estavam confusos em Freddie. Sua sexualidade manteve-se a sombra por muito tempo. (Bulhões 2018)

1970. Seu amigo Tim do grupo Smile é convidado pra cantar em outra banda, e Freddie que sabia todas as letras assume o vocal da banda, ao lado do guitarrista Brian May e do baterista Roger Taylor. Assim que chegou no Smile, Freddie tratou logo de repensar o nome da banda. Ele queria algo forte, universal, potente, imediato e aberto a todo o tipo de interpretação: QUEEN. Polissêmica, a palavra ‘queen’ além de significar rainha é sinônimo da palavra ‘gay’, além de guardar muitas outras leituras possíveis, é um nome que expressa algo grandioso e pomposo.

Nessa época assume o famoso sobrenome, escolhido por três motivos. Primeiro pelo significado trazido pela mitologia: Mercúrio na mitologia romana, associado ao deus grego Hermes, é um mensageiro e deus da venda, lucro e comércio; segundo porque na astrologia o planeta Mercúrio é o regente do signo de virgem que é o signo de Freddie; e terceiro por causa da música “My Fairy King” que contém o seguinte verso: "Mãe Mercury, olhe o que fizeram comigo". May disse que após escrever esse verso, Mercury afirmou que estava cantando sobre sua própria mãe. “Mãe Mercúrio (Mercúrio) / Olhe o que eles fizeram a mim / Eu não posso correr, não posso me esconder. O logotipo da banda também foi desenvolvido por Freddie com base na astrologia. Ele praticamente montou um mapa astrológico incluindo o símbolo de todos os componentes da banda.

Em 1975, com o lançamento do álbum “A Night At The Opera” o Queen inicia seus anos de glória. “Bohemian Rhapsody”, com letra e música do jovem Freddie, então com apenas 19 anos, alcança o topo de todas as paradas de sucesso. Em novembro, o lançamento do vídeo homônimo inaugura uma nova era de vídeos artísticos.

Em 13 de julho de 1985, no festival “Live Aid”, o Queen mostrou ao mundo sua face politicamente engajada. O “Live Aid”, que vemos recriado no filme “Bohemian Rhapsody”, foi organizado para arrecadar fundos pra ajudar na causa da fome na Etiópia. Aconteceu simultaneamente em Londres e nos Estados Unidos e contou com shows dos maiores artistas do mundo. Para a crítica especializado, a performance do Queen no “Live Aid” foi a mais importante da história da banda. Em apenas 20 minutos de apresentação e 6 músicas, o grupo levantou as 82 mil pessoas presentes em Wembley. Era o auge da carreira, do sucesso, e de Freddie. Quando em 1986, “A Kind Of Magic” (o décimo segundo álbum da banda, e o último promovido com uma turnê) é lançado o Queen já é uma verdadeira entidade mítica do rock com 300 milhões de discos vendidos ao longo da carreira e a banda com mais semanas nas paradas de sucesso.

Em 1987 Freddie descobre que havia contraído o vírus HIV. A partir de então Freddie se dedica a fazer músicas e vídeos até seu fim. Em 1988 lança o álbum solo Barcelona com a participação da cantora lírica espanhola Montserrat Caballé em praticamente todas as faixas. A canção Barcelona seria escolhida para ser o hino dos Jogos Olímpicos de 1992 na Espanha, mas que Mercury não pode presenciar. Freddie Mercurymorreu alguns meses antes do início dos jogos, no dia 24 de novembro 1991. Ao seu lado estava Jim Hutton, seu companheiro desde 1985, dois anos antes da descoberta da doença de Freddie a qual só foi revelada publicamente apenas um dia antes de sua morte, em 23 de novembro de 1991, através de uma carta autoral em que relata o sofrimento de seus últimos dias.

Freddie Mercury (Foto: Legacy / Media Punch)

Freddie foi um dos primeiros grandes astros do alto escalão a morrer por causa da Aids, e isso torna difícil contar sua história separada dessa questão. O seu legado atravessa a dimensão do rock e da música como um todo, e traz também a conscientização sobre a Aids. Mas em hipótese alguma sua existência pode ser reduzida a essas questões. São inúmeras as contribuições do artista Freddie Mercury à cultura contemporânea, pois, como vimos com Kant, um gênio “dá a regra à arte”. Por isso, como bem lembra Tognolli (2018) “analisar sua carreira, sua sexualidade, sua morte quase trágica e precoce em função da Aids, é correr um grande risco: estaremos sujeitos a psicologismos, moralismos (...) já falar de sua poética e do que ela evoca, nos mostra um caminho para pensar”.

Evidenciando a importância do corpo e do elemento performático de Freddie, Tognolli observa que não estamos diante de apenas uma bela voz: “é um corpo que se expressa, se lança a nossos olhares e assombra pelo erotismo e força expressiva. Não basta ouvi-lo: é preciso ver seu corpo se agitar e ocupar todo o espaço do palco e da plateia”. Ainda enfatizando a importância do corpo para Mercury, Tognolli observa as transformações que o corpo e a aparência do artista sofrem: “abandona os cabelos longos dos roqueiros, e que seu grupo musical conserva, e surge com um corpo masculino viril e polimorfo, que expõe em roupas marcantes e pouco discretas. Músculos, coreografias, levantes, convite a um banquete dionisíaco, que as plateias enormes aceitam de bom grado. Freddie se oferece a seus fãs, sem medo e com coragem”.

Claro que lançar os holofotes para a potência artística e corporal de Mercury não implica em obscurecer as questões que geralmente emergem quando se fala dele. Trata-se apenas de um cuidado para não caricaturizar um ser tão complexo a fim de auscultar suas múltiplas dimensionalidades sem a sobreposição de uma sobre a outra, mas pensadas em articulação nem sempre harmoniosas.

Na delicada temática da sexualidade, o filme mostra Freddie encarando sua bissexualidade, junto à namorada amiga de toda a vida, herdeira de sua mansão, a quem dedicou a música “Love of my life”. Momentos acompanhados de angústia, tão familiar a todos nós, mas que no filme ganha ares trágicos. Homossexual? Gay? Bissexual? A sexualidade está em questão, no corpo de Freddie e na política dos corpos dos anos 80.

Bulhões (2018) vê no comportamento de Freddie Mercury, por vezes desmedido, uma grande dose de autodestruição. Em algum momento do filme, alguém diz-lhe: "quando começares a gostar de si mesmo, me procura!". No filme, nota Bulhões, este comportamento de Freddie é associado à dificuldade da aceitação de sua condição homossexual pela família, que não conseguia abrir nenhum canal de diálogo para tratar sobre esse assunto.

Cuidar para manter-se vivo faz parte do amor próprio. Entretanto, além disso, a aceitação da homossexualidade pela sociedade é essencial para que cada sujeito possa ser respeitado de acordo com a naturalidade dessa condição e tenha o direito de vivê-la plenamente. A sexualidade humana é um tema complexo e mesmo que Freud tenha aberto os caminhos para tratar disso de forma séria, ainda hoje encontramos discursos conservadores que caminham na contramão (Bulhões, 2018).
Em vários momentos de sua obra, Freud coloca uma questão: qual a fonte de onde os artistas retiram suas fantasias, e como conseguem despertar-nos emoções tão intensas? Freddie Mercury sem dúvida despertou intensas emoções em diversas plateias e revelou uma poética inusitada para um garoto que veio de um país exótico e se destacou na cena musical tal qual um Elvis Presley, um homem que como ele faz uso abusado de seu corpo, de seu erotismo e sensualidade em grau máximo. De tempos em tempos nosso planeta é divinamente acometido por esses suntuosos e raros cometas, verdadeiros gênios que têm como destino mudar o rumo da história de seu tempo. E Freddie Mercury, assim como um Leonardo Da Vinci, Arthur Rimbaud, Sigmundo Freud, Stéphane Mallarmé, Fiodor Dostoievski, James Joyce e outros aqui estiveram para cumprir o legado que a natureza lhes impôs, pois como disse Kant em sua Crítica da Faculdade do Juízo “o próprio talento enquanto faculdade produtiva do artista pertence à natureza”.


IMAGEM:

Foto: Filme "Bohemian Rhapsody" 2002 com direção de Bryan Singer.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BULHÕES, Maria Ângela. Bohemian Rhapsody. 2018.

KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade do Juízo. Tradução de Valério Rohden e António Marques. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 1993.

TOGNOLLI, Dora. Mercury – Bohemian Rhapsody – 1946 -1991. 2018

Elenice Milani

Criadora e escritora do site elenicemilani.com.br, Filósofa, Psicanalista Clínica, criadora e coordenadora do grupo Psicanálise e Literatura.


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