Lacan e seus trilhamentos pela linguagem

Lucas LPM



Freud tinha um conceito básico em toda a sua metapsicologia: o conceito de representação, Vorstellung. Filosoficamente, a Vorstellung designa uma realidade psíquica por oposição a algo que não é psíquico.

No texto “O inconsciente”, por exemplo, Freud afirma que “uma pulsão nunca pode tornar-se objeto da consciência — só a ideia (Vorstellung) que a representa (...)” e que, “ mesmo no inconsciente, uma pulsão não pode ser representada de outra foma a não ser por uma ideia”. As representações de coisas são diferenciadas por Freud das representações de palavras. “Estas últimas são exclusivas do sistema Pcs/Cs. Os conteúdos dos sistemas psíquicos são, portanto, os seguintes: representações e afetos. As representações podem ser, por sua vez, divididas em: representações de coisas e representações de palavras. O inconsciente é constituído apenas por representações de coisas, ficando as representações de palavras e o afeto restritos ao sistema pré-consciente-consciente” (Garcia-Roza, 2009, p. 177-178).

Enquanto para Freud o inconsciente é constituído apenas por representações de coisas, para Lacan, diferentemente, “o inconsciente se estrutura como uma linguagem”, hipótese desenvolvida principalmente entre 1953 e 1960, período este conhecido como de “retorno a Freud”.

No fundo, explica Safatle (2007, P.41), o "retorno a Freud" “foi o slogan encontrado por Lacan para definir o momento de integração do conceito de inconsciente à sua teoria. Até então, toda a estrutura da causalidade psíquica fora descrita através da relação do sujeito com imagens ordenadoras de processos de socialização, que poderiam ser conscientemente apreendidas no interior da análise. A partir deste momento, Lacan retornará ao conceito freudiano fundamental. Um retorno bem peculiar, já que esse inconsciente não virá de Freud. Ele virá do estruturalismo”.

O estruturalismo, representado por figuras como Claude Lévi-Strauss, Emile Ben-veniste e Althusser, afirma Safatle, trouxe uma teoria da sociedade que transformava a linguagem no fato social central. O que interessa a Lacan, neste momento estruturalista, “é a noção de inconsciente como sistema de regras, normas e leis que determinam a forma geral do pensável. Ela estará presente na famosa afirmação: "o inconsciente é estruturado como uma linguagem", o que no fundo pode ser simplesmente traduzido como: o inconsciente é a linguagem (enquanto ordem que organiza previamente o campo de toda experiência possível)” (Safatle, 2007, p. 43).

Lacan denominará de “Simbólico” o sistema linguístico que estrutura o campo da experiência. O inconsciente não é um lugar ou um depósito, nem está ligado a fatos psicológicos como a memória, a atenção e a sensação, ou à intencionalidade, mas é concebido como ordem sóciossimbólica. Neste ponto, a influência do “Inconsciente Estrutural” de Claude Lévi-Strauss sobre o pensamento lacaniano fica evidenciada. Para Lévi-Strauss aponta que o inconsciente não é um fato mental individualizado, mas um sistema de trocas sociais e simbólicas.

A partir deste fundo teórico, passo agora a abordar alguns fragmentos do meu trajeto de pesquisa em torno do Seminário XII, “Problemas Cruciais Para a Psicanálise” (1964-1965). O foco se centrará na modificação da relação entre signo e significante no âmbito do ensino de Lacan. Em princípio, o signo era considerado por Lacan em termos saussurianos, composto por um significante e por um significado. A partir deste momen-to, há um deslocamento, uma separação: uma teoria do signo e uma teoria do significante.

Tal deslocamento e separação tem seu momento mais nítido, segundo nossa leitura, a partir da retomada de um outro método de entendimento da linguagem, não mais saussuriano, mas proveniente da antiguidade, mais exatamente do modelo fornecido pelo estoicismo. Vejamos brevemente a influência de Saussure no pensamento de Lacan para então retornarmos aos estóicos e esclarecer a importância desta corrente filosófica para um novo momento do pensamento sobre a linguagem em Lacan.

Para Saussure, a linguagem seria formada por elementos chamados signos. Juntando vários signos temos a significação, por exemplo de uma frase, de um parágrafo, de um livro, de um texto, de uma enciclopédia e de um discurso ao final. Todas essas noções são derivadas da noção de signo que compõe-se de um significante e um significado.

Lacan, neste momento do Seminário XII, vai se apropriar da noção de significante que está na linguística, e que define o método estrutural, e introduzir a hipótese de que o significante tem primazia sobre o significado. Para ele, a concatenação dos significantes determina os efeitos de significado e de significação. Com isso, avançará com novas precisões a ideia supracitada de que o inconsciente se estrutura como linguagem e, também, a concepção de que âmbito da linguagem é a dimensão do significante que representa o desejo inconsciente. O que era uma lógica de signos em Saussure passa a ser uma lógica de significantes em Jacques Lacan, configurando uma “autonomia do significante”.

Um exemplo da autonomia do significante, na condução e no suporte para o desejo, encontramos no esquecimento de nomes próprios. Freud vai a Orvieto, na Itália, vê afrescos em uma Igreja, e ao relatar a experiência a um italiano culto esquece o nome do pintor.

Para Lacan o recalcamento no fundo é o descompasso, o desligamento, a perda da ligação entre significantes. Freud, diz ele, tenta a associação o pintor será Botticelli? Não. Será Boltraffio? Não. Interessante notar como é que se sabe que não são esses os nomes. Boltraffio, Botticelli fazem Freud lembrar da Bósnia Herzegovina que tem uma cidade chamada Trafoi. Boltraffio,Trafoi, o significante passa de um lado para o outro. “Trafoi!”. Freud lembra que foi de onde ele recebeu uma notícia ruim, uma paciente que veio a faleceu Continua associando e diz: “Bósnia Herzegovina, um país muçulmano, os muçulmanos são um povo que prezam muito a sexualidade. “Sexo e morte”. Também eles chamam os médicos de Her- Herzegovina- Her como os alemães, e chamam “Signore” em italiano signore”. Quando ele faz essa ligação lembra o nome do pintor da catedral de Orvieto: Signorelli. “Sig” era também a forma carinhosa como a sua mãe o chamava, o apelido de Sigmund, esse Sig que teria sido recalcado por estar muito erotizado.

Tudo isso então, argumenta Lacan, poderia ser obra de uma maquinaria de representações de ideias, mas também pode ser a demonstração de uma determinação materialista da linguagem e de como o funcionamento significante vai enlaçando uma multiplicidade de pontos. Eis a cadeia associativa pensada em termos de significantes.

Esta maneira de abordar o significante, distinta de Saussure, dizíamos, foi proporcionada pela aproximação de Lacan do pensamento dos estóicos. O estoicismo foi uma escola de filosofia helenística fundada em Atenas por Zenão de Cítio (Cítio, 333 .C. – Atenas, 263 a.C) no início do século II, a.c. O estoicismo, que surgiu, portanto, na Grécia Antiga, prolongou-se até o Império Romano, incluindo a época do Imperador Marco Aurélio, até que todas as escolas filosóficas foram encerradas em 529 d.c. por ordem do Imperador Justino, que eliminou as características pagãs em nome da fé cristã.

Um dos pilares da doutrina estóica é a relação entre os corpos e os incorporais, entre resis e lecton. A resis compreende tudo aquilo que existe; e tudo o que existe, para os estóicos, são corpos. No âmbito da resis, lida por Lacan, tudo é remissível, tratável pela relação de predicação. Por outro lado, os estóicos postulam os incorporais; estes não são corpos, mas são exprimíveis. Os incorporais serão considerados como lecton, como algo que não é da ordem dos corpos, como o tempo, o espaço e o vazio, ou seja, aquilo que é da ordem do dizível, mas que não possui imagem especular.

Com essa recuperação da distinção estoica de corpos e incorporais no Seminário XII, Lacan operará uma reformulação do paradigma linguístico saussuriano, mostrando que há algo da ordem do corpo envolvido na linguagem. A distinção estóica entre corpos e incorporais, nota-se, possibilitam Lacan, neste momento de sua obra, dar um novo tratamento ao significante, e realizar uma espécie de batalha tática ao estruturalismo.

Além da reformulação por intermédio dos estoicos, de concepções cruciais de linguagem herdadas do estruturalismo, podemos dizer que a matriz teórica lacaniana, se não se desloca profundamente, se amplia para além dos círculos ecoados ao longo dos séculos pela metafísica platônica. Além dos estóicos, os sofistas também são evocados por Lacan no Seminário XII, mais especificamente na lição XVIII, de 12 de maio de 1965. Nela encontramos a frase: “o psicanalista é a presença do sofista em nossa época”. Lacan estuda Górgias, Isócrates, Protágoras.

Os sofistas não estão interessados em uma justificativa pública universal, mas em um uso prático da linguagem. Eles estão interessados, para falar como Barbara Cassin, nos “efeitos sofísticos”. São refutadores, passam a vida dizendo: não é isso, não é bem isso.

Interessado nos efeitos práticos das palavras, um sofista pode até mesmo proferir um discurso falso. Ora, então é possível o discurso falso? E qual é o seu fundamento? Tais questões criam verdadeiros impasses: qual é a origem do erro? Qual é a origem da mentira? Qual é a origem do falso? Que tipo de não ser é esse que funda o discurso sofístico?

Considerando diferentes maneiras de se abordar a linguagem na antiguidade, Lacan encontrará um fio condutor que será de grande impacto na sua própria maneira de considerar linguagem que se complexifica, não mais se restringindo, portanto, ao que lhe chegou por intermédio de Lévi-Strauss, Jakobson e Saussure nos anos 50. Na verdade, já anteriormente havia encontrado em Alexandre Kojève a noção de que a atividade da linguagem é, não apenas modo de simbolização, mas também, uma forma de negação da coisa, de negação do outro, de negação de si mesmo, de negação das representações do mundo. Uma outra atividade fundamental para Kojève, além da negação, é a atividade desejante. E Lacan estava muito atento a isso. Porém, aqui já adentramos uma outra questão para um próximo texto, sobre desejo, falta...


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Foto: Fonte desconhecida.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GARCIA-ROZA. L.F. Freud e o Inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

LACAN, J. (1964-1965) Seminário XII Problemas Cruciais para a Psicanálise. Edição Centro de Estudos Freudianos do Recife.

SAFATLE, V. Lacan. São Paulo. Publifolha, 2007.

Elenice Milani

Criadora e escritora do site elenicemilani.com.br, Filósofa, Psicanalista Clínica, criadora e coordenadora do grupo Psicanálise e Literatura.


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