Kant e Freud: ensaio sobre a ambivalência da moral e do desejo
No início de “Totem e Tabu”, Freud faz uma forte afirmação. O tabu “não é outra coisa, em sua natureza psicológica, senão o “imperativo categórico” de Kant, que tende a agir coercitivamente e rejeita qualquer motivação consciente. (Freud, 2012 [1912-1913], p.9).
Suspeitamos que o tabu dos selvagens polinésios não se acha tão longe de nós como pensávamos inicialmente, que as proibições morais e tradicionais a que obedecemos poderiam ser essencialmente aparentadas a esse tabu primitivo, e que o esclarecimento do tabu lançaria luz sobre a obscura origem de nosso próprio “imperativo categórico” (Freud,op. cit., p. 30-31).
Tal afirmação, entretanto, ao longo do texto, será matizada, e mais do que tese passará a operar como hipótese, que será, apenas em certa medida, refutada por Freud, a partir do exame da gênese do tabu articulada com sua experiência clínica com neuróticos obsessivos, marcados fortemente pela moral, “consciência de culpa” [Schuldbewusstsein] e pela “angústia da consciência” [Gewissensangst].
Proibições antiquíssimas, os tabus, conforme fontes da antropologia acessadas por Freud, são impostos de uma geração a outra. “Tais proibições recaíram sobre atividades para as quais havia um forte pendor. Elas então foram mantidas de geração em geração, talvez simplesmente devido à tradição, levada pela autoridade dos pais e da sociedade. Mas talvez já tenham se “organizado”, dentro das organizações posteriores, como parte do patrimônio psíquico herdado” (Freud, op. cit., p. 39).
As mais antigas e importantes proibições do tabu, sublinha Freud, são as duas leis fundamentais do totemismo: não liquidar o animal totêmico e evitar relações sexuais com os indivíduos do mesmo totem que são do sexo oposto.
Imperativo categórico, determinação psicossocial ou ainda imperativo de uma esfera desejante pura? A questão se reabre a partir da incursão de Freud às leis do totemismo. O próximo passo dado por Freud para abordar o problema será pensar o tabu como se fosse da mesma natureza que uma proibição obsessiva.
Deixemos claro, já de antemão, que muitas das proibições de tabu consideradas são de tipo secundário, deslocado e deformado, e que devemos ficar satisfeitos em lançar alguma luz sobre os tabus mais originais e significativos. Além disso, as diferenças entre a situação dos selvagens e a dos neuróticos podem ser importantes o suficiente para excluir uma total concordância, para impedir uma transposição de um para o outro que equivalesse a uma cópia exata (Freud, op. cit. , p. 38).
Apesar das diferenças entre os tabus e as proibições obsessivas, algo parece se equivaler. “O desejo original de fazer o proibido continua a existir nos povos em que há o tabu. Eles têm, em relação a tais proibições, uma atitude ambivalente; nada gostariam mais de fazer, em seu inconsciente, do que infringi-las, mas também têm receio disso; receiam justamente porque querem, e o temor é mais forte que o desejo. No entanto, o desejo é inconsciente em cada indivíduo desse povo, tal como no neurótico” (Freud, op. cit., p. 32). Dessa situação, conclui que o fundamento do tabu é uma ação proibida, para a qual há um forte pendor no inconsciente.
Freud ainda acrescenta que a violação de determinados tabus implica um perigo social, que deve ser conjurado ou expiado pelos membros de uma sociedade, a fim de preservá-la. “Se substituímos os desejos inconscientes pelos impulsos conscientes, tal perigo existe realmente. Ele consiste na possibilidade da imitação, em virtude da qual a sociedade logo se desagregaria. Deixando impune a violação, os outros se dariam conta de querer agir da mesma forma que o transgressor” (Freud, op. cit., p. 41).
As conclusões obtidas acerca da investigação da gênese do tabu não são, ao menos temos essa impressão, de ordem “puramente moral”, nem estão no rol das “ideias inatas”, mas adquiridas. Neste ponto, a investigação levado a cabo por Freud tensiona a hipótese de equivalência do Tabu com o “imperativo categórico” kantiano.
O tabu é uma proibição antiquíssima, imposta do exterior (por uma autoridade) e voltada contra os mais fortes desejos do ser humano. A vontade de transgredi-lo continua a existir no inconsciente; aqueles que obedecem ao tabu têm uma postura ambivalente quanto ao alvo do tabu. A força mágica a ele atribuída remonta à capacidade de induzir em tentação; ela age como um contágio, porque o exemplo é contagioso, e porque o desejo proibido desloca-se para outra coisa no inconsciente. Expiar a violação do tabu com uma renúncia mostra que na base da obediência ao tabu se acha uma renúncia. (Freud, op. cit., p. 41).
Todavia, apesar das pistas coletadas, Freud, em um movimento dialético peculiar, admite não ser suscetível de prova a afirmação relativa à gênese do tabu, segundo a qual ele se originou de uma proibição antiquíssima, que um dia foi imposta do exterior.
Ele então retomará longamente a análise da relação tabu e neurose, e procurará saber que valor pode ser atribuído à equiparação entre o tabu e a neurose obsessiva e à concepção do tabu alcançada com base nessa equiparação. “Então procuraremos confirmar se as determinantes psicológicas do tabu são as mesmas que conhecemos da neurose obsessiva. Como chegamos, no caso da neurose, ao conhecimento desses fatores psicológicos? Pelo estudo analítico dos sintomas, principalmente dos atos obsessivos, medidas de defesa e obrigações obsessivas. Neles encontramos os melhores indícios de que derivam de impulsos ou tendências ambivalentes, seja correspondendo a um desejo e a um contradesejo simultaneamente, ou estando predominantemente a serviço de uma das duas tendências opostas. Se conseguirmos mostrar também nas prescrições do tabu a ambivalência, o governo de tendências contrárias, ou achar entre elas algumas que deem expressão simultânea às duas correntes, à maneira das ações obsessivas, a concordância psicológica entre o tabu e a neurose obsessiva estará garantida no aspecto mais importante” (Freud, op. cit., p. 42).
A técnica psicanalítica, segundo Freud, ao submeter à análise do tabu, como se fizesse parte do quadro de sintomas de uma neurose, logo de saída pode se deter no excesso de angustioso cuidado que se apresenta como razão para o cerimonial do tabu. “Na neurose, em especial na neurose obsessiva, que utilizamos principalmente em nossa comparação, a ocorrência de tal carinho excessivo é bastante comum. Chegamos a compreender muito bem sua origem. Ele sempre surge quando, além do carinho predominante, há uma corrente oposta mas inconsciente de hostilidade, ou seja, quando se verifica o caso típico de ambivalência emocional. A hostilidade é então abafada por uma intensificação excessiva do carinho, que se manifesta como angustiosa solicitude e que se torna obsessiva, pois de outro modo não cumpriria sua tarefa de manter sob repressão a corrente oposta inconsciente” (Freud, op. cit., p. 56).
Mas o apoio mais sólido para sua abordagem, que compara as proibições dos tabus a sintomas neuróticos, Freud encontrará nas próprias cerimônias dos tabus. Se admitimos, diz ele, que os efeitos que produzem eram buscados desde o início, tais cerimônias revelam inequivocamente seu duplo significado e sua derivação de tendências ambivalentes. Elas, além de, positivamente, distinguirem os reis e os elevarem acima de todos os comuns mortais, visam, por outro lado, negativamente, mostrar que a vida do rei é um sofrimento e um fardo insuportável, e os obriga a uma servidão pior que a de seus súditos. “Parecem-nos, assim, a exata contrapartida aos atos obsessivos da neurose, nos quais o instinto suprimido e aquele que o suprime acham satisfação comum e simultânea. O ato obsessivo é supostamente uma proteção contra o ato proibido; mas nós dizemos que é, propriamente, a repetição do proibido. O “supostamente” refere-se aqui à instância consciente da psique, o “propriamente”, à instância inconsciente. Assim também, o cerimonial do tabu dos reis é supostamente a mais alta honra e segurança para eles, e propriamente o castigo por sua elevação, a vingança que os súditos têm sobre ele” (Freud,op. cit., p. 58).
Freud observa que, também, em relação aos nomes, muitas vezes tornados tabus pelos “selvagens”, a atitude dos neuróticos obsessivos é semelhante. “Assim como certos selvagens que considera o nome de um morto como parte da pessoa deste e o tornem objeto de tabu, certos neuróticos “mostram uma total “sensibilidade de complexo” em relação a enunciar ou escutar certas palavras e nomes, e do tratamento que dão ao próprio nome se origina um bom número de inibições frequentemente graves” (Freud, op. cit., p.63).
Mas qual a origem do medo dos mortos existente em muitos povos? Freud, desta vez a partir de sua experiência com os sentimentos ambivalentes dos neuróticos com relação às pessoas amadas, mostrará que trata-se de uma projeção, já operando mesmo entre os selvagens. “A hostilidade, da qual o indivíduo nada sabe nem quer saber, é jogada da percepção interna para o mundo externo, é desprendida da própria pessoa e empurrada para outra. (...) Essa corrente hostil ante os parentes mais próximos e mais queridos podia ficar latente enquanto eles viviam, isto é, não revelar-se à consciência nem de forma direta nem indireta, mediante uma formação substitutiva. Com a morte das pessoas simultaneamente amadas e odiadas isso já não era possível, o conflito tornou-se agudo. O luto proveniente da ternura intensificada tornou-se, por um lado, mais impaciente com a hostilidade latente, e, por outro lado, não pôde admitir que dela resultasse um sentimento de satisfação. Assim chegou-se à repressão da hostilidade inconsciente pela via da projeção” (Freud, op. cit., p. 56).
Tendo assim iluminado o terreno em que se desenvolveu o tão instrutivo tabu dos mortos, Freud irá acrescentar algumas observações que podem, segundo ele, ser relevantes para a compreensão do tabu em geral. “Nossa abordagem nos leva a concluir, sem dificuldade, que desde o princípio a palavra “tabu” tem esse duplo sentido, que ela serve para indicar uma determinada ambivalência e tudo o que se originou no terreno dessa ambivalência. “Tabu” é uma palavra ambivalente em si mesma, e acreditamos, a posteriori, que o sentido comprovado do termo já permite supor o que se obteve como resultado de ampla pesquisa, que as proibições do tabu devem ser vistas como produto de uma ambivalência emocional” (Freud, op. cit., p. 73).
Os neuróticos, dirá ainda, trouxeram consigo uma constituição arcaica como resíduo atávico, cuja compensação, por exigência da cultura, força-os a um enorme dispêndio psíquico. Agora a questão de decidir se o resíduo atávico a que se refere Freud tem a forma pura e transcendental de um imperativo categórico ou se origina da experiência fenomênica é uma questão kantiana par excelence que Freud, pelo viés da psicanálise, manteve, até certo ponto, em aberto, tal qual um bom pensador... Freud é muito cuidadoso nesse terreno e coloca a conclusão da investigação na condicional. “Se não estamos errados, a compreensão do tabu também lança luz sobre a natureza e a gênese da consciência moral [Gewissen]. Podemos falar, sem esticar os conceitos, de uma consciência do tabu [Tabugewissen] e uma consciência de culpa do tabu [Tabuschuldbewusstsein], após a transgressão do tabu. A consciência do tabu é provavelmente a mais antiga forma que encontramos do fenômeno da consciência” (Freud, op. cit., idem).
Evidentemente que, pelo viés da psicanálise, Freud parece tender por uma determinação do desejo e do inconsciente como fonte das determinações morais. “Afinal, não é necessário proibir o que ninguém deseja fazer, e, de todo modo, o que se proíbe enfaticamente deve ser objeto de um forte desejo” (Freud, op. cit., p. 75). Mas a questão filosófica não se fecha inteiramente com a abordagem do problema do ponto de vista da psicanálise, afinal, o desejo pode disparar uma esfera moral transcendental latente a qual o tabu e às leis tentam, móbiles práticos, responder (a não ser que o imperativo categórico seja algo como um desejo puro!). O que vem primeiro? A proibição moral ou o desejo? Talvez, na verdade, sejam simultâneos, o que explicaria nossas ambivalências. Seres morais, mas também desejantes. Seres desejantes, mas também morais.
Referências bibliográficas
FREUD, S. Obras Completas. Vol.11. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das letras, 2012.
________. “Totem e Tabu [1912-1913]”. In: Obras Completas. Vol.11. Trad. Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2012.
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