A pulsão social e o papel do líder

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    Em 1909, Freud afirmou não estar convencido da existência de uma pulsão de agressividade independente da pulsão de autopreservação. Já após a formulação da hipótese da pulsão de morte em Além do Princípio do Prazer (1920), postulou uma pulsão de agressividade independente. Porém, esta pulsão era aí secundária, derivada da pulsão de morte autodestrutiva e primária. Em O Mal-estar na civilização (1929), tornará a se referir a uma pulsão independente da libido e ligada ao narcisismo, responsável pelos impulsos de agressividade, enfatizando desta vez as manifestações da pulsão de morte voltadas para o exterior.

    Com esta breve introdução, acenamos à abordagem freudiana em torno da existência de uma pulsão de agressividade independente, tema que por si só merece um mergulho aprofundado em suas obras, e aproximamo-nos, por esta via, da questão que perpassará o presente texto. O que do Amor, Eros, tende a unir – a fazer Um – e o que da pulsão de morte a separar?

    Inicialmente podemos pensar na luta entre Eros, pulsão de vida, e Thanatos, pulsão de morte, empregada por Freud para caracterizar o processo civilizatório, mas também associada ao desenvolvimento do indivíduo, e à vida orgânica em geral. No que diz respeito ao processo civilizatório, Freud dirá que constitui uma modificação, que o movimento vital experimenta, sob a influência de uma tarefa que lhe é atribuída por Eros e incentivada pelas exigências da realidade, Ananké, isto é, a de unir indivíduos isolados em uma comunidade por vínculos libidinais.

    Antes de prosseguirmos, uma distinção precisa ser feita entre o “processo de desenvolvimento individual” e o “processo civilizatório”. No processo de desenvolvimento individual, orientado pelo programa do princípio do prazer, e que visa a felicidade individual, a ênfase principal recai sobretudo na premência egoísta (ou a premência no sentido da felicidade), ao passo que a outra premência, que pode ser descrita como ‘cultural’, geralmente se contenta com a função de impor restrições. Já no processo civilizatório, o que mais importa é criar uma unidade a partir dos seres humanos individuais. “É verdade que o objetivo da felicidade ainda se encontra aí, mas relegado ao segundo plano. Quase parece que a criação de uma grande comunidade humana seria mais bem-sucedida se não se tivesse de prestar atenção à felicidade do indivíduo” (Freud, 1920, p. 88).

    As duas premências, segundo Freud, a que visa a felicidade pessoal e a que se orienta para a união com os outros, conflituam entre si em todo indivíduo. E o mesmo ocorre com os dois processos de desenvolvimento, o individual e o cultural. Entretanto, no limite, diz Freud, a luta entre o indivíduo e a sociedade não é irreconciliável como é a luta entre as pulsões primevas de Eros e da morte. “Trata-se de uma luta dentro da economia da libido, comparável àquela referente à distribuição da libido entre o ego e os objetos, admitindo uma acomodação final no indivíduo, tal como, pode-se esperar, também o fará no futuro da civilização, por mais que atualmente essa civilização possa oprimir a vida do indivíduo” (Freud, 1929, p. 89).

    Ele pensará no desenvolvimento de um superego, não apenas no âmbito individual, mas também civilizatório. A comunidade, de acordo com Freud, desenvolve um superego sob cuja influência se produz a evolução cultural. Mais ainda, ele afirma, certas manifestações e propriedades do superego podem ser mais facilmente detectadas em seu comportamento na comunidade cultural do que no indivíduo isolado.

    O “superego cultural” ao desenvolver ideais e estabelecer exigências delineia uma ética. A ética, portanto, em chave freudiana pode ser pensada como uma exigência cultural. Ela consiste no esforço para alcançar, através de uma ordem do superego, algo até agora não obtido por meio de quaisquer outras atividades culturais, ou seja, uma situação em que seja abolida “a inclinação, constitutiva dos seres humanos, para a agressividade mútua” (Freud, 1920, p. 90). O mandamento de amar ao próximo como a si mesmo é, neste contexto, uma maneira de tentar operar na prática a ética compreendida como ordem cultural do superego. Porém, um grande problema para os indivíduos surge justamente aí. E Freud é muito perspicaz em sua explicação que, ainda que um pouco longa, vale a pena citar na íntegra, pois ajuda-nos na tarefa de pensar a condição humana na modernidade e, talvez mesmo, na pós-modernidade como dizem alguns.

Exatamente as mesmas objeções podem ser feitas contra as exigências éticas do superego cultural. Ele também não se preocupa de modo suficiente com os fatos da constituição mental dos seres humanos. Emite uma ordem e não pergunta se é possível às pessoas obedecê-la. Pelo contrário, presume que o ego de um homem é psicologicamente capaz de tudo que lhe é exigido, que o ego desse homem dispõe de um domínio ilimitado sobre seu id. Trata-se de um equívoco e, mesmo naquelas que são conhecidas como pessoas normais, o id não pode ser controlado além de certos limites. Caso se exija mais de um homem, produzir-se-á nele uma revolta ou uma neurose, ou ele se tornará infeliz. O mandamento ‘Ama a teu próximo como a ti mesmo’ constitui a defesa mais forte contra a agressividade humana e um excelente exemplo dos procedimentos não psicológicos do superego cultural. É impossível cumprir esse mandamento; uma inflação tão enorme de amor só pode rebaixar seu valor, sem se livrar da dificuldade. A civilização não presta atenção a tudo isso; ela meramente nos adverte que quanto mais difícil é obedecer ao preceito, mais meritório é proceder assim. Contudo, todo aquele que, na civilização atual, siga tal preceito, só se coloca em desvantagem frente à pessoa que despreza esse mesmo preceito. Que poderoso obstáculo à civilização a agressividade deve ser, se a defesa contra ela pode causar tanta infelicidade quanto a própria agressividade! A ética ‘natural’, tal como é chamada, nada tem a oferecer aqui, exceto a satisfação narcísica de se poder pensar que se é melhor do que os outros. Nesse ponto, a ética baseada na religião introduz suas promessas de uma vida melhor depois da morte. Enquanto, porém, a virtude não for recompensada aqui na Terra, a ética, imagino eu, pregará em vão (Freud, 1929).


    Ainda assim, mesmo com tantas dificuldades, o desejo de criação de uma grande comunidade humana permanece. O ingresso do sujeito num grupo social e o espírito gregário que o sujeito herda de Eros, que mantêm unidas todas as coisas vivas, convergem na direção desse desejo. Ilusório? Talvez, muito embora não é um dado a se desconsiderar o fato de que o Ego, em seu relacionamento com o Id, tomado de uma perspectiva exterior, aparenta manter linhas de demarcação claras e distintas, mas que, na realidade, são, se assim podemos dizer, em muitos momentos borradas. Nas palavras de Freud (1920):

não há nada de que possamos estar mais certos do que do sentimento de nosso eu, do nosso próprio ego. O ego nos aparece como algo autônomo e unitário, distintamente demarcado de tudo o mais. Ser essa aparência enganadora - apesar de que, pelo contrário, o ego seja continuado para dentro, sem qualquer delimitação nítida, por uma entidade mental inconsciente que designamos como id, à qual o ego serve como uma espécie de fachada -, configurou uma descoberta efetuada pela primeira vez através da pesquisa psicanalítica, que, de resto, ainda deve ter muito mais a nos dizer sobre o relacionamento do ego com o id. No sentido do exterior, porém, o ego de qualquer modo, parece manter linhas de demarcação bem e claras e nítidas.


    No auge do sentimento de amor, por exemplo, a fronteira entre ego e objeto é ameaçada. Contra todas as provas de seus sentidos, o sujeito enamorado declara que “‘eu’ e ‘você’ somos um só”, e está preparado para se conduzir como se isso fosse um fato: o “fazer Um”. Portanto, dirá Freud, o sentimento de nosso próprio ego está sujeito a abalos, e as fronteiras do ego não são permanentes.

    Ainda que exista a possibilidade de união, Freud parece cético quanto à sua realização, ao menos por ‘nossa’ civilização. Ele parece ver nela mais os sintomas de uma neurose coletiva. “Se o desenvolvimento da civilização possui uma semelhança de tão grande alcance com o desenvolvimento do indivíduo, e se emprega os mesmos métodos, não temos nós justificativa em diagnosticar que, sob a influência de premências culturais, algumas civilizações, ou algumas épocas da civilização - possivelmente a totalidade da humanidade - se tornaram ‘neuróticas’?”

    Por outro lado, as forças da separação parecem predominar na civilização. Antecipando em décadas o que hoje os cientistas e filósofos chamam de Antropoceno, Freud, nos anos 20 do século passado, afirmou, sem hesitar, que “os homens adquiriram sobre as forças da natureza um tal controle, que, com sua ajuda, não teriam dificuldades em se exterminarem uns aos outros, até o último homem”.

    Em O Futuro de uma Ilusão, Freud tematiza o desamparo de um bebê e o seu anseio pelo pai. Tal sentimento, prolongado desde os dias da infância, nos habita sustentado pelo medo do poder superior do destino, que está na base da formação da angústia do desamparo original. O desenvolvimento do superego de um indivíduo se dará justamente para garantir-lhe um suporte, prepará-lo para os grupos humanos, familiares inclusive, mas esse processo pode vir a adquirir contornos dramáticos.

    A necessidade na infância da proteção de um pai é tão intensa que os seres humanos tendem a buscar a restauração deste narcisismo ilimitado, por exemplo, no sentimento oceânico da religião, no exército, etc. Esta busca seria uma tentativa dos homens de configurarem uma contenção do perigo de sujeição que o Ego reconhece no mundo externo.

    Como vimos acima, também um superego cultural desenvolverá seus ideais e estabelecerá suas exigências através de ordens e proibições. Ele se orienta em prol da “bem aventurança” do ego, muito embora considera de modo insuficiente as resistências contra a obrigação em obedecer ordens e proibições, bem como desconsidera força pulsional do id e as dificuldades apresentadas pelo meio ambiente real.

    Neste contexto de tensão do superego, tanto no plano individual como no plano grupal, Freud falará de questões como “medo da consciência”, de agressividade em forma de censura. Neste ponto, reencontramos algo da questão posta nos parágrafos de abertura deste texto, agora, entretanto, acrescida de um componente social e civilizacional. Como explicar a ambivalência estrutural entre pulsão de morte e pulsão de vida, tanto em nível íntimo como civilizacional?

    Tentaremos abordar o problema através de uma analogia, do pai, do líder, do chefe, dos membros individuais que compõem um grupo, isto é, do que agrega socialmente, com a multicelularidade; sendo, portanto, analogicamente, a sociedade uma continuação da organização celular.

    Uma tendência da libido, sentida por todos os seres vivos da mesma espécie, revela-se na combinação destes em unidades cada vez mais abrangentes. Sozinho, o indivíduo sente-se incompleto. Antes, o caráter multicelular dos organismos se tornou um meio de prolongar a sua vida. Uma célula ajuda a conservar a vida de outra, e a comunidade das células pode sobreviver mesmo que as células individuais tenham que morrer. A libido, portanto, coincide com Eros, que mantém unidas todas as coisas vivas.

    Eis que começamos entrever a “pulsão social”, que não vem à luz em nenhuma outra situação. É de se esperar, ao menos hipoteticamente, que a pulsão social seja uma pulsão primitiva, incapaz de desagregar-se, e que seja possível descobrir nos primórdios de sua evolução, um círculo mais estreito, tal como o da família.

    Ora, se a tendência da vida é se unir, então porque há multidões que parecem lutar em nome da morte propagada por um líder? Aqui, com nossa questão principal melhor determinada, é necessário estudar a vida mental do indivíduo, considerando um contraste entre atos narcisistas (predisposições pulsionais, motivos e fins do indivíduo) e atos sociais (ações e relações do indivíduo com outros). Neste contraste observa-se que a psicologia individual se relaciona com o homem individualmente e explora os caminhos pelos quais ele busca encontrar satisfação para suas pulsões. Contudo, raramente e sob certas condições excepcionais, a psicologia individual se acha em posição de desprezar suas relações com os outros. Na realidade, todas as relações que constituem a vida de um indivíduo, como os pais, irmãos, irmãs, etc., seus objetos de amor, podem ser consideradas como fenômenos sociais. O que ocorre aí é que estas relações podem ser postas em contraste com certos processos narcisistas, nos quais a satisfação da pulsão é parcial ou totalmente retirada da influência de outras pessoas.

    Tentemos, pois, pensar o que é um grupo, psicológico ou não, quando este é tão decisivo na vida do indivíduo, e definir qual é a natureza de uma certa alteração mental, quando uma multidão de pessoas se organiza em grupo, numa ocasião determinada, com um intuito definido. O contraste entre atos mentais, de ordem social ou então aqueles de ordem narcisista talvez possa ser pensado observando-se o lugar ocupado por um pai, um chefe, um líder na manutenção da estruturação de um grupo, e os processos de identificação com esta figura. A identificação, bem sabemos, como a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa, desempenha um papel na história primitiva do complexo de Édipo. A identificação contém um esforço por moldar o ego de uma pessoa, segundo o aspecto daquele que foi tomado como modelo.

    Primeiro, a identificação constitui a forma original de laço emocional com um objeto. Segundo, de maneira regressiva, se torna sucedânea para uma vinculação do objeto libidinal por meio da introdução do objeto no ego. Terceiro, pode surgir com qualquer nova percepção de uma qualidade comum, partilhada com alguma outra pessoa que não é o objeto da pulsão. Quanto mais importante, essa qualidade comum é melhor sucedida. Começamos a perceber que o laço mútuo existente entre os membros de um grupo é da natureza de uma identificação baseada numa importante qualidade emocional comum, e podemos suspeitar que ela é responsável pelo laço com o líder.

    Porém, há líderes e líderes. Há líderes que agregam pela via do amor natural, e estimulam o fazer laço, e os líderes da desagregação. Uma vez que a continuidade natural tenha sido interrompida não é difícil pensar nos fenômenos que surgirão sob essas condições.

    Mas seja pela via de eros seja pela de thanatos, a tendência que as pessoas têm de se submeter a um grupo, pelas suas inibições, seus sintomas, favorece o desaparecimento da personalidade consciente, permitindo a predominância da personalidade grupal. A modificação, por meio de sugestão e contágio de sentimento e ideias, são as características principais de um indivíduo que faz parte de um grupo. Ele não é mais ele mesmo; transformou-se num autômato que se deixou dirigir, à espera de alguém que lhe diga como proceder.

    Freud lembra que as relações amorosas constituem a essência da mente grupal, propondo uma concepção da estrutura libidinal do exército e da igreja. O líder tende à tentativa de fazer laço, como representante deste lugar que une.

É o amor então o que junta às pulsões parciais? E o ódio o que as desagrega?

    Quem é o líder? Falemos, para concluir, dele. Talvez a essência que o compõe revele algo do amor que agrega, ou então do seu oposto, isto é, o ódio que aparenta agregar, mas, na verdade, desagrega. Seja o quer for, tal figura encarna o fenômeno da pulsão social, e pode, inclusive, vir a usar a força bruta para manter os seus seguidores, isto é, pessoas que se reuniram a partir da necessidade de uma autoridade, com quem se identificam, e que tome decisões por elas, o que denota uma submissão ilimitada. O laço com o líder não é casual, mas resulta da soma dos restos de cada um, daquilo que da pulsão cai e é mantido entre os membros do grupo como algo que pode assegurar e fazer laço. Efeito de identificações, poder de unificação, mesma ilusória, das partes, o líder, o leviathan hobbesiano diríamos, é eleito pela pulsão social. Mas quem é mesmo o líder? E qual a sua pulsão social? A sua e a dele ou dela ...

Referências bibliográficas:

FREUD, S. Notas sobre um caso de neurose obsessiva (1909) . Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. X. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

_________ Totem e tabu (1913). Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

_________ Além do princípio de prazer (1920). Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

_________ O futuro de uma ilusão (1927). Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

_________ O mal-estar na civilização (1929). Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.




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