Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise: uma breve síntese
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“Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”: uma breve síntese
Através destes textos, procuramos, acompanhando Lacan em suas falas, ressaltar o duplo movimento que ele realiza na determinação destes conceitos. Por um lado, Lacan recorre, sempre de maneira muito respeitosa, ao fundador da psicanálise, Freud, apontando a presença de cada um desses conceitos em suas obras. Por outro lado, Lacan, apresenta estes conceitos, sem negar o pensamento do mestre em sua totalidade, segundo sua própria perspectiva, alimentada pela filosofia, pela antropologia e pela linguística.
Fink lembra que em 1963, Lacan foi muito pressionado a mudar sua prática ou parar de exercer a análise didática se quisesse continuar pertencendo ao instituto psicanalítico francês, a Societé Française de Psychanalyse, da qual fora membro por muitos anos. Ele recusou, e o Seminário 11 é um produto dessa recusa. Ele marca um ponto de virada na vida de Lacan, e também em seu ensino.
Embora apresente muitos pontos de continuidade com o trabalho anterior, o Seminário 11 também representa uma ruptura: uma ruptura com Freud, de modo algum antifreudiana em suas intenções - com a dependência do uso de artigos ou livros de Freud como centro de cada um dos seminários, e com tamanha dependência dos conceitos freudianos, Lacan se permitindo daí por diante uma latitude teórica cada vez mais ampla - e uma ruptura com a associação formada por Freud, a Intemational Psychoanalytical Association (IPA). Em 1964, Lacan fundou sua própria escola, a Ecole Freudienne de Paris (EEP), iniciando sua busca de novas formas e procedimentos institucionais. Sua preocupação com o ensino ou "transmissão" e "transmissibilidade" da psicanálise tomou-se uma prioridade, resultando, por exemplo, numa formalização cada vez maior e num procedimento para a avaliação da transmissão analítica conhecido como o "passe" (Fink, 1997, p. 10).
Jacques-Alain Miller completa o que diz Fink e afirma que "Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise" parece ser um tributo a Freud, uma vez que os quatro conceitos são tirados diretamente de sua obra. Assim como Lacan, na época, chama sua instituição de Escola Freudiana, em seu seminário utiliza o termo "conceitos freudianos" apenas para provar que não é um dissidente. Mas, dentro deste "tributo", ele tenta ir além de Freud. Não um além que deixe Freud para trás: trata-se de um além de Freud que mesmo assim está em Freud: Lacan está à procura de alguma coisa na obra de Freud de que o próprio Freud não se deu conta. Algo que podemos chamar de "extimidade", já que é tão íntimo que Freud mesmo não o percebeu. Tão íntimo que essa intimidade é extimidade. É um mais-além interno" (J-A. Miller, 1997, p.20).
Vamos agora recapitular brevemente os quatro conceitos que estudamos dispersamente a fim de produzir uma espécie de amarração.
Uma das definições do inconsciente, dentre muitas dadas por Lacan no Seminário 11, é "tropeço, desfalecimento, rachadura. Numa frase pronunciada, escrita, alguma coisa se estatela. Freud fica siderado por esses fenômenos, e é neles que vai procurar o inconsciente. Ali, alguma outra coisa quer se realizar - algo que aparece como intencional, certamente, mas de uma estranha temporalidade. O que se produz nessa hiância, no sentido pleno do termo produzir-se, se apresenta como um achado. É assim que a exploração freudiana encontra o que se passa no inconsciente" (Lacan, 1964, p. 30).
No prefácio de 1976 à edição em língua inglesa do Seminário 11, Lacan reiterara essa noção. "Quando o espaço de um lapso não porta mais qualquer significado (ou interpretação), só então se pode estar certo de estar no inconsciente".
O conceito de inconsciente, comenta Jacques-Alain Miller (1997, p. 22), até então havia sido negligenciado pelos psicólogos do eu, "a ponto de, para eles, nem mesmo ser um conceito fundamental. Eles não sabem o que fazer com o inconsciente porque consideram que a primeira tópica de Freud- inconsciente, pré-consciente, consciente foi completamente superada pela segunda tópica - eu, supereu e isso. Portanto, descartam inteiramente a primeira".
Lacan, acrescenta Miller, revitalizou o conceito freudiano de inconsciente, ao compreender o "inconsciente como um sujeito", formulação que não está na conceituação de Freud. Ainda que, por vezes, Freud use das Ich para se referir ao sujeito, é mais comum a utilização de das Ich para se referir ao eu. "O sujeito é um conceito lacaniano, um reordenamento da obra de Freud" (Jacques-Alain Miller, 1997, p. 21). Mas, lembremos sempre, o sujeito do inconsciente aqui não se confunde com o "sujeito do conhecimento". "Lacan optou por enfatizar o inconsciente como sujeito, um sujeito que não tem substância, que é um tropeço, já que algo não se encaixa, mas se expande para preencher o próprio desejo" (Idem, p. 23).
Ainda no âmbito do Seminário 11, Lacan mantém a formulação inaugural do inconsciente como efeito do significante e estruturado como linguagem, acrescentando a noção de "pulsação temporal'. "Vocês têm aí acesso rápido à formulação, que coloquei em primeiro plano, de um movimento do sujeito que só se abre para tornar a se fechar, numa certa pulsação temporal" (Lacan, 1985 [1964], p. 121).
O inconsciente para Lacan também aparece como repetição. "Isso é o que Lacan apresenta como a rede de significantes. O inconsciente também é uma articulação de significantes" (J-A. Miller, 1997, p. 23). Lacan recorrerá à “Física” aristotélica e por intermédio dos conceitos de autômaton e tiquê abordará a "rede de significantes" e o "encontro do real". A tiquê aristotélica será traduzida por "encontro do real", com aquilo que está para além do autômaton e dos signos regidos pelo princípio do prazer. "O real é o que vige sempre por trás do autômaton" (Lacan, 1985, p. 56).
Vimos que ao abordar o conceito de inconsciente, Lacan enfatizou a imagem do tropeço. Já quando o conceito de repetição é tematizado, o inconsciente se manifestará como algo que a todo instante diz o mesmo no tropeço... "Aquilo com que precisamente temos que trabalhar é com esse tropeção, esse fisgamento, que reencontramos a todo instante" (Lacan, 1964 [1985], p. 56).
Já a "transferência" é, para Lacan, a "atualização da realidade do inconsciente". Mas, notemos bem a forma da conceitualização lacaniana, o que é atualizado não é o real do inconsciente, mas a realidade. Lacan "mostra que a realidade do inconsciente é sempre ambígua e ilusória, ao passo que a repetição está ligada ao real, que não engana. Quando Lacan fala sobre a angústia, no Seminário 10, distingue a angústia de todos os outros afetos, dizendo que, na análise e na vida, a angústia é o único afeto que não engana, ou ilude. Ele mostra como a angústia se liga àquilo que chama de real. É uma função que se pode não compreender, mas que não engana" (J-A. Miller, 1997, p.24).
Por fim, em sua apresentação do conceito de pulsão Lacan sublinha a "topologia da borda, que explica o privilégio dos orifícios, o estatuto da ação retroativa, a dissociação entre o alvo e o objeto". Sobre a dissociação entre o objetivo e o alvo da pulsão, Freud afirmava, e Lacan reitera, explica Miller (1997, p. 25), que "pode-se ter ou não o objeto da pulsão - comida, por exemplo, no caso da pulsão oral. Mesmo assim, como diz Freud, o objeto em si não é importante. Ele pode ser isto ou aquilo, mas o que permanece o mesmo é o que é satisfeito no circuito pulsional. Mesmo que não se alcance o alvo, realiza-se o objetivo, que é o gozo".
Neste ponto, notamos uma relação da pulsão com a repetição. Lacan, na sessão "O inconsciente e a repetição", mostra que repetimos porque não alcançamos o alvo. Alguma coisa, de fato, é satisfeita, mas não o que deveria ter sido. "É por isso que Lacan desenvolveu a noção do real como aquilo que volta sempre ao mesmo lugar para o sujeito, mas que o sujeito não encontra" (J.A., Miller, 1997, p. 26)
"A pulsão escópica" também recebeu um desenvolvimento particular no Seminário 11. "Demonstrar nela a antinomia da visão e do olhar teve o objetivo de atingir o registro, fundamental para o pensamento de Freud, do objeto perdido. Esse objeto nós o formulamos como a causa da posição do sujeito que é subordinada pela fantasia" (Lacan, 2003 [1965], p. 196). E o que é este objeto perdido? Segundo Jacques-Alain Miller (1997, p.24) "ele é ilustrado, na teoria analítica, pela mãe como o objeto primário fundamental que, mediante a operação do Nome-do-Pai, é para sempre proibida e perdida. Lacan diz que a mãe é aquela Ding fundamental, a coisa sempre perdida e que a repetição tenta recuperar, perdendo sempre".
Em síntese, mas sem esgotar a questão, que é muito mais ampla, podemos então dizer que, para Lacan, o inconsciente é um "movimento do sujeito que só se abre para tornar a se fechar, numa certa pulsação temporal"; o inconsciente é também uma rede e uma articulação de significantes, e no tropeço ele se repete e diz o mesmo a todo instante, eis pois o conceito de repetição intimamente relacionado ao de inconsciente; "a transferência é a atualização da realidade do inconsciente", porém, vimos que para obtermos o sentido deste conceito devemos, como alertou Miller, ligar a transferência à realidade como ilusória e a repetição ao real como aquilo que não engana; finalmente vimos que a pulsão é algo cuja sua satisfação pode ocorrer sem atingir seu alvo. Sendo assim, ela é pulsão parcial. "Assim, se a pulsão pode ser satisfeita sem ter atingido aquilo que, em relação a uma totalização biológica da função, seria a satisfação ao seu fim de reprodução, é que ela é pulsão parcial, e que seu alvo não é outra coisa esse retorno em circuito" (Lacan, 1964 [1985], p. 170). No caso da pulsão oral, por exemplo, Lacan diz que "nenhum alimento jamais satisfará a pulsão oral, senão contornando-se o objeto eternamente faltante".
Apreciados individualmente e em conjunto os quatro conceitos trabalhados por Lacan ao longo do Seminário 11, retomemos a questão com a qual ele iniciou sua jornada conceitual. "A psicanálise é uma ciência?" Esta questão margeou toda a abordagem do inconsciente, da repetição, da transferência e da pulsão. Um caminho possível para o seu esclarecimento, lançamos como hipótese, pode se dar através da noção de "Grundbegriff" ("conceito fundamental"). Os quatro conceitos estudados são "Grundbegriff", isto é, conceitos fundamentais que traçam uma via no real que se trata de demarcar. É este poder explicativo do real que pode vir a fazer dos conceitos da psicanálise científicos e da psicanálise uma ciência.
Entretanto, seja qual for o caso, para Lacan, aponta Jacques-Alain Miller, não se trata de restringir à psicanálise aos conceitos freudianos fundamentais, mas a partir deles produzir, se assim podemos dizer, uma transformação interna. "Lacan levanta questões epistemológicas sobre os conceitos psicanalíticos, mas ao fazer isso ele está realmente perguntando se os conceitos de Freud devem permanecer os únicos válidos em psicanálise. Fica claro (...) que ao dar um seminário sobre os quatro conceitos fundamentais da psicanálise ele está introduzido outros conceitos que, estritamente falando, não estão na obra de Freud, e que Lacan considera como seus próprios" (J-A. Miller, 1997, p. 21).
É neste sentido de enriquecimento conceitual da psicanálise que Lacan afirma que se ela deve se constituir como ciência do inconsciente é necessário partir do fato de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem ("structuré comme un langage") (Lacan, 1964, p. 185). Tal "domínio da estrutura", todavia, responde Lacan aos seus críticos, não elimina a dinâmica da experiência e não elude o princípio da doutrina freudiana de que essa dinâmica é, em sua essência, sexual. "Eu espero que o processo do seminário deste ano (...) mostre-lhes que esta dinâmica está longe de se perder" (Lacan, [1985] 1964, p. 185).
Os avanços conceituais alcançados por Lacan a partir da retomada os conceitos fundamentais da psicanálise no Seminário 11 são incontestáveis. Permanecem, entretanto, e aqui finalizamos com o próprio Lacan, duas perguntas "é a psicanálise uma ciência?" e "o que é uma ciência que inclua a psicanálise" (Lacan, 2003 [1965], p. 195).
Texto por Elenice Milani.
IMAGEM:
Foto : Telas "Papilla Estelar" e "Gypsy and Harlequin" de Remedios Varo, 1958
Foto Livro: Foto Reprodução
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FINK, B. "Prefácio". In: Para ler o Seminário 11 de Lacan: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Richard Feldstein, Bruce Fink, Maire Jaanus (orgs.) Tradução: Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
LACAN, J. O Seminário. Livro 11. Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro, 1985 [1964].
LACAN, J. Outros Escritos. Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro, 2003 [1965].
MILLER, Jacques-Alain. "Contexto e conceitos". In: Para ler o Seminário 11 de Lacan: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.Richard Feldstein, Bruce Fink, Maire Jaanus (orgs.) Tradução: Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
LACAN, J. O Seminário. Livro 11. Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro, 1985 [1964].
LACAN, J. Outros Escritos. Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro, 2003 [1965].
MILLER, Jacques-Alain. "Contexto e conceitos". In: Para ler o Seminário 11 de Lacan: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.Richard Feldstein, Bruce Fink, Maire Jaanus (orgs.) Tradução: Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
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