A Psicanálise e a Filosofia vão ao cinema: um relato de experiência

Neste texto faço um “relato de experiência” acerca do projeto “Cinema e Psicanálise” que desenvolvo desde 2017 em museus e instituições educacionais de Curitiba, também mantenho apresentações por videos no meu canal do youtube Elenice Milani Psicanalista.
Por meio deste projeto são realizadas exibições de filmes e debates de temáticas psicanalíticas articuladas com questões filosóficas, estéticas e literárias.
Até o momento já foram realizadas “muitas sessões'' atraindo um público significativo formado por pessoas das mais diversas áreas, como artistas, filósofos, cineastas, escritores, pedagogos, psicólogos, psicanalistas, engenheiros e estudantes.
Farei a seguir uma breve discussão sobre alguns marcos teóricos e metodológicos que estruturam o projeto e depois passo ao relato de um dos filmes apresentados e discutidos: “Um Amor De Swann”, dirigido por Volker Schlondorff, baseado na obra literária de Marcel Proust.
BREVE DISCUSSÃO
O projeto “Cinema e Psicanálise” é amparado teoricamente por discussões sobre cinema e psicanálise, por abordagens filosóficas sobre cinema, e por teorias sobre o cinema que tematizam a prática cineclubista.
O filósofo Walter Benjamin, diferentemente de seus companheiros da “Escola De Frankfurt”, viu no cinema algo mais do que uma fonte de alienação da Indústria Cultural. Para Benjamin a reprodução técnica da obra de arte dissolveu sua aura, isto é, aquilo que conferia às obras de arte uma existência única e para poucos. A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica pode ser, finalmente, fruída pelas massas.
Além de apontar a dessacralização da arte aberta pela tecnologia e as possibilidades emancipatórias dos novos meios e formas culturais, Benjamin viu no cinema um potencial psicanalítico. Citamos Benjamin:
Se levarmos em conta as perigosas tensões que a tecnização, com todas as suas consequências, engendrou nas massas – tensões que em estágios críticos assumem um caráter psicótico –, percebemos que essa mesma tecnização abriu a possibilidade de uma imunização contra tais psicoses de massa através de certos filmes, capazes de impedir, pelo desenvolvimento artificial de fantasias seu amadurecimento natural e perigoso. (Benjamin, 1994, p. 190).
Na trilha de Benjamin, Tania Rivera chama de “imagem-furo” um agenciamento de imagens que põe o espectador em questão, que problematiza sua realidade, capaz de colocá-lo na vertigem, por vezes poética, de um mundo heterogêneo do qual não é mais senhor. Nas palavras de Rivera: “brechas entre imagens, espaço irreconhecível, caos pulsante que é a própria vida” (Rivera, 2008, p.8).
Assim como o cinema se interessa pela psicanálise, a psicanálise, conforme Rivera, se interessa pelo cinema, mas segundo a autora não apenas para aplicar a psicanálise às obras para apontar nelas alguma verdade que apenas esta disciplina poderia revelar, mas para “buscar conhecimento sobre o homem nessas obras e, mais especificamente, com elas aprender sobre o sujeito e sua relação com a imagem. (Rivera, 2008, p.9-10). Tania Rivera lembra que Freud não deixou de convocar obras diversas, principalmente literárias, mas também de Michelangelo e Leonardo da Vinci, por exemplo, para construir sua teoria.
Jean-Claude Bernardet (1980), referindo-se à discussão de filmes em cineclubes, destaca a recepção ativa de conteúdos pelos espectadores que acrescentam à experiência cinematográfica suas próprias experiências existenciais.
Contrariamente a muitas teses, diante do cinema, o espectador não é necessariamente passivo. (...) No ato de ver e assimilar um filme, o público transforma-o, interpreta-o, em função de suas vivências, inquietações, aspirações, etc. Quem costuma discutir filmes em cineclubes já terá percebido até que ponto um filme pode transformar-se no ato de recepção pelos espectadores (Bernardet, 1980, p.42).
Em termos metodológicos, são articulados diversos passos, sempre procurando encontrar respaldo teórico, a fim de estruturar os diversos momentos de construção das sessões.
Os filmes são escolhidos em razão da possibilidade de relacioná-los com temas da psicanálise, mas também da filosofia, da literatura e das artes em geral.
À título de exemplo, um dos filmes trabalhados, De Olhos Bem Fechados, dirigido por Stanley Kubrick, tem, segundo Sérgio Telles “uma estrutura ambígua e onírica, onde realidade e sonho se confundem sem fronteiras definidas, o que faz com que os personagens e leitores muitas vezes não saibam se os acontecimentos ocorridos são reais ou imaginários”. (Telles, 2012, p.91 - 92).
Além de sua dimensão evidentemente psicanalítica, este filme foi baseado no livro Traumnovelle (“Breve Romance de Sonho”) de Arthur Schnitzler, escritor austríaco contemporâneo de Freud e admirado por este. Segundo Elizabeth Roudinesco, "a morte, a sexualidade, a neurose, o monólogo interior, o desvelamento da alma, o suicídio formavam em Schnitzler a trama de um impressionismo literário, ao qual Freud foi tão sensível que expressou numa carta de 1922 o receio que lhe inspirava o encontro com o seu duplo". (Roudinesco & Plon, 1998, p.690).
De muita importância no livro de Schnitzler e no filme de Kubrick, e marcante na relação entre Schnitzler e Freud, o tema do duplo foi também desenvolvido por Freud no ensaio O Estranho.
No livro de Schnitzler e no filme de Kubrick compreendemos que “a ferida narcísica tem implicações mais profundas que o simples desejo de vingança'': ao ouvir a confissão da mulher, o marido é envolvido pela sensação de “estranho”, das Unheimlich. Ele não pode reconhecer sua mulher naquela que lhe diz coisas tão inusitadas. Sua mulher, que lhe era tão familiar, parecia uma estranha, uma mulher nunca vista, uma desconhecida”. (Telles, 2012, p.98).
Segundo Telles, esse estranhamento profundo, esse desencadear da vivência do estranhamento familiar, do se deparar com algo simultaneamente familiar e estranho, são as impressões que acompanham como Freud diz, a emergência do desejo inconsciente, e da fantasia reprimida. Aparece quando algo que deveria permanecer oculto vem à luz. (Telles, 2012, p.98).
Por fim, a metodologia adotada para promover as exibições e os debates baseia-se na prática cineclubista em que à exibição de um filme segue-se um debate com o público presente mediado por um especialista.
No caso do “Cinema e Psicanálise” a mediação é feita por mim que sou psicanalista, mas também com experiência na linguagem cinematográfica. Após os filmes, é feito um comentário do filme baseado em leituras prévias e afins de obras clássicas da psicanálise, da literatura, da teoria literária e da filosofia.
Para a condução dos debates baseio-me em autores que enfatizam a importância do diálogo, da construção dialógica. Podemos mencionar como fontes de inspiração a forma dos diálogos platônicos até o dialogismo de Mikhail Bakhtin para quem a verdadeira substância da língua é constituída justamente nas relações sociais, via interação verbal, realizada por meio da enunciação ou das enunciações. (Bakhtin, 1986, p. 123).
RELATO DA EXIBIÇÃO DE UM AMOR DE SWANN
“Um Amor De Swann” foi exibido no dia 12 de agosto de 2019 no Teatro Bom Jesus. O filme é baseado na obra literária de Marcel Proust, mais precisamente “No Caminho de Swann”, o primeiro dos sete volumes do romance “Em Busca Do Tempo Perdido”, um dos maiores êxitos literários da cultura ocidental do início do século XX.
Após a exibição, como abordagem psicanalítica acerca da obra Em Busca do Tempo Perdido, e mais especificamente do volume “No Caminho de Swann”, comentei a produção a partir de trabalhos de Philippe Willemart e Roberto Machado, dois estudiosos da obra de Marcel Proust.
O escritor foi contemporâneo de Sigmund Freud e podemos encontrar na obra temas psicanalíticos bem como processos fundantes da psicanálise como a “associação livre”.
Proust descreve em sua obra o processo de tornar-se escritor. Alguém que almeja tornar-se escritor parte de memórias, sonhos, reminiscências e lembranças e as coloca no papel; assim começa a escrever… Eis aí a regra fundamental da psicanálise: a “associação livre”.
Antes de dar o título “Em Busca do Tempo Perdido”, Proust tinha denominado o projeto como “O Romance do Inconsciente”.
Proust faz nascer personagens ilustres como Swann, rico nobre de Vermet e valioso conhecedor de obras de arte. Tal personagem, que expressa grande desejo de se tornar escritor, porém nunca conseguindo escrever, acaba a vida como decorador na casa de amigos nobres. Isso porque focou na busca por viver frívolas paixões, perdendo-se em incessantes buscas por aventuras amorosas. O volume “No Caminho de Swann” é o retrato de um homem frustrado, não realizado em seus desejos de tornar-se escritor.
Os personagens que encontram um caminho de realização dos próprios desejos são notoriamente o pintor e músico Vinteuil e o escritor Marcel. Os dois são os que puderam descobrir como conseguir ir em busca de um caminho de realizações e não de um caminho errante.
Proust é conhecido como alguém que descobre a “memória Involuntária”: um tipo de memória que surge quando se tem sensações ao mesmo tempo em que se tenta trabalhá-las. Não é a mesma coisa como a de sentir algo, ter sensações e tudo se esvai imediatamente, “se esquece e acabou”. Temos o exemplo de Swann quando está ouvindo a Sonata de Vinteuil: o momento o remete a lembrar-se de momentos de paixão com Odette de Crecy. Há algo de um ressentimento aí, uma sensação que o faz sofrer, embora prefira não querer saber do que se trata, procurando assim não se ater a dor. “Odette está perdida”, diz Swann, “já não a amo mais ao ouvir a música de Venteuil”. E quando diz “já não amo Odette”, pensa “então agora posso me casar com ela”, pensando que é preciso separar-se dela no sentimento de amor para tê-la como esposa. Uma deflagração de memória que ressuscita um passado, despertando uma impressão que está morta em cenas edípicas, “é preciso não amá-la mais para poder desposá-la”. Swann vai se tornando um homem cada vez mais medíocre e degradante.
O tema do amor para Proust remete ao “tempo perdido”. Para ele, a natureza do amor é de acabar com a morte do próprio sentimento, e com isso morremos um pouco ao mesmo tempo.
Proust, através dessa circulação em torno dos personagens, vai sempre construindo algo novo, mediando as sensações que produzem em um espaço novo, onde acaba formando um relacionamento de identificação com o leitor. Podemos pensar nessa relação, esse “espaço novo” proustiano, de maneira convergente com as ideias de Sigmund Freud e Jacques Lacan. Proust se aproxima muito da psicanálise nesta obra fundamental. A diferença é que Freud e Lacan teorizaram a Psicanálise, fundamentando-a, almejando o status de ciência, utilizaram-na como práxis; Proust não realizou teoria psicanalítica, fez poesia e literatura.
A série Em Busca do Tempo Perdido é de um tempo de reflexão sobre um estado do qual Proust quer escapar, seja do tempo do cotidiano e linear, seja do tempo sucessivo. Ele cria então o personagem Marcel, para mostrar que no final ele obtém o êxito de escapar de si mesmo. Denomina de “tempo extra-temporal”, “fora do tempo” ou “minutos livres da ordem do tempo”, tempo esse que une presente e passado, vislumbrando a eternidade imanente ao tempo. Santo Agostinho, quando perguntaram a ele sobre o tempo, disse: “Eu sei o que é o tempo, mas basta querer saber sobre ele, que já não sei mais falar sobre, não sei o que é”. A psicanálise é impreterivelmente ruma até essa questão do tempo, quando Freud e Lacan nos falam sobre a “atemporalidade do inconsciente”.
A proposta de Psicanálise e Cinema aproxima as pessoas à magia da sétima arte, evocando a possibilidade de vivenciar a análise psicanalítica, filosófica, biográfica, estética, literária e cinematográfica.
Em viés psicanalítico, trata-se de uma proposta que convoca o ser de cada sujeito a uma descoberta de si, uma vez que a obra fílmica mobiliza também identificações, sensações, alegria e tristezas.
À exibição dos filmes segue-se uma exposição psicanalítica da obra e debates abrangentes e consistentes. O público, de perfil diversificado, participa ativamente com questões, análises e sugestões de filmes. Um ambiente internacional de trocas existenciais, culturais e afetivas é gerado em cada encontro.
As discussões, dado à variedade do público, não se restringem apenas a uma dimensão técnica da psicanálise, mas abrangem também outros campos do saber, como também questões candentes da contemporaneidade. Por exemplo, a questão da “Feminilidade”, que mobilizou um grande público durante um semestre em 2018 quando foram apresentados filmes que remetiam à temática.
O dispositivo cinematográfico revela-se um interessante recurso para se trabalhar em espaços educacionais formais, não formais e informais, via vídeos em canal do youtube, uma variedade de temas, assuntos e questões da humanidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 3ª ed. São Paulo: Hucitec, 1986.
BENJAMIN, Walter. “A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica”. in: Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios Sobre Literatura e História da Cultura. Obras Escolhidas. Vol. 1. São Paulo, Brasiliense, 1994.
BERNADET, Jean-Claude. O que é Cinema. São Paulo: Brasiliense, 1980.
CABRERA, Julio. O cinema Pensa. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.
RIVERA, Tania. Cinema, imagem e psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
ROUDINESCO, E. & PLON, M. Dicionário de Psicanálise. Trad. Vera Ribeiro e Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, (1998.
TELLES, Sergio. O psicanalista vai ao cinema. Vol. 1. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2012.
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