Desejo e angústia sob a “Luz de Inverno”

Entre 1961 e 1962, Bergman (1918-2007) dirigiu a Trilogia do Silêncio, composta pelos filmes “Através de um espelho” (Sasom i em spegel) (1961-1962), “Luz de Inverno” (Nattvardsgarterna) (1961-1962) e “O Silêncio” (Tystnaden) (1962).
Os filmes da trilogia apresentam algumas variações entre si, e ainda que a temática seja semelhante, a abordagem e a construção narrativa são distintas, mantendo cada um dos filmes uma autonomia que permite que sejam vistos em ordem inversa ou mesmo em separado (Mesquita, 2013).
Neste texto, o foco recairá sobre o filme “Luz de inverno”, que trata da busca do ser humano por respostas para os mistérios da existência a partir do confronto com o silêncio divino perante os sofrimentos humanos e com as explicações dadas pelo Cristianismo. Silencioso, Deus, se existe, parece não intervir nas aflições humanas.
Tomas Ericsson (Gunnar Björnstrand) é um pastor luterano de um vilarejo da Suécia atormentado por dúvidas crescentes em relação ao sentido da vida e à existência de Deus que, diante de suas preces, parece mudo. Seu conflito é intensificado pelas questões do pescador Jonas Persson (Max von Sydow) que, perturbado pela total ausência de ações divinas num mundo conturbado, o procura.
Mas, em razão de suas próprias incertezas em relação ao divino, o pastor não consegue convencer o pescador de que há algum propósito para a existência e de que há sinais concretos da presença de Deus. “Vivemos nossas vidas simples e atrocidades ameaçam a segurança do nosso mundo. É tão opressivo e Deus parece tão distante. Me sinto tão impotente. Não sei o que dizer. Compreendo seu desespero, mas devemos continuar vivendo", diz o pastor ao atormentado pescador que terminará por optar pelo suicídio.
Já Marta Lundberg, diferentemente destes dois, a princípio, não busca nada no transcendente, mas, como ambos, experimenta o sentimento de angústia, porém em razão da falta do desejado amor. Mais tarde, diante da recusa de Tomas em corresponder ao seu amor, ela recorrerá a Deus em busca de explicações.
Nossa análise se centrará no tema da angústia que no filme decorre da crise da fé de alguns de seus personagens. A questão da neurose obsessiva também será abordada. A partir das experiências vividas pelos personagens do filme que, no anseio por um sentido existencial imediato, são lançados a uma torrente de dúvidas e sentimentos intensos, faremos dois movimentos. Um através da filosofia e outro através da psicanálise. Nosso propósito é duplo, queremos ampliar nossas perspectivas conceituais sobre a angústia e sobre a neurose obsessiva suscitadas pelo filme e, ao mesmo tempo, ampliar as possibilidades de leitura e interpretação da obra.
1 A angústia pensada pela filosofia
A angústia tem sido abordada por diferentes correntes filosóficas. Pascal, Kierkegaard, Comte-Sponville, Heidegger, Sartre, Camus e Cioran, todos estes pensadores a tematizaram em seus escritos. Não teremos espaço para exaurir o que cada um pensou sobre o tema, mas procuraremos, apresentar elementos que consideramos chave para introduzirmo-nos no pensamento filosófico sobre o tema.
Pascal, através de um exercício especulativo, nos convida a pensar a condição humana diante da nossa única, e angustiante para a maioria das pessoas, verdade a priori: a finitude, a morte.
Suponhamos determinado número de homens presos e condenados à morte, sendo alguns degolados todos os dias na frente dos outros, e os que restam constatando a própria condição na de seus semelhantes e contemplando uns aos outros com tristeza e desesperança no aguardo de sua vez. Aí está a imagem da condição dos homens (PASCAL, 2005, p. 87).O que é mais angustiante do que morrer, pergunta Comte-Sponville. “O medo é o primeiro sentimento por certo, pelo menos ex utero: o que mais angustiante do que nascer? E em geral deve ocorrer que ele seja o derradeiro: o que mais angustiante do que morrer? Aí está: nascemos na angústia, morremos na angústia. Entre os dois, o medo quase não nos deixa. O que mais angustiante do que viver? É que a morte é sempre possível, o sofrimento é sempre possível, e é isso a que se chama vivente: um pouco de carne oferecida à agressão do real.
Um pouco de carne ou de alma expostas ali, à espera de sabe-se lá o quê. Sem defesas. Sem auxílio. Sem amparo. O que é a angústia senão esse sentimento em nós, com ou sem razão, da possibilidade imediata do pior?
Não se refuta um sentimento, e este menos do que os outros. Que o pior seja de fato possível, sempre possível, quem o pode negar? Certas pessoas parecem separadas da angústia apenas pela pobreza de sua imaginação, como se fossem por demais inteligentes para ter medo. Invejo-as às vezes, mas erroneamente. A angústia faz parte da nossa vida. Abre-nos para o real, para o futuro, para a indistinta possibilidade de tudo. Ter de libertar-se dela é o que ela própria nos indica suficientemente, pelo desconforto. Mas não depressa demais nem a qualquer preço. O medo é uma função vital - é uma vantagem seletiva evidente-, e não poderíamos viver muito tempo sem ele. A angústia não passa, por certo, de sua ponta mais fina, a mais sensível, a mais refinada… Demais? Quem o pode julgar? Que seria o homem sem a angústia? A arte, sem a angústia? O pensamento, sem a angústia? Depois, a vida é pegar ou largar, e é disso também que a angústia, dolorosamente, nos lembra. Que não há vida sem risco. Não há vida sem sofrimento. Não há vida sem morte. A angústia marca a nossa impotência, é nisso que é verdadeira também, e definitivamente. Fazem-me rir os que querem curar-nos dela. Por que não nos protegem, em vez dela, contra a vida? Não se trata de evitar, e sim de aceitar. Não de curar, e sim de atravessar. O universo nada nos prometeu, dizia Alain. E o que mais além do universo? Como seríamos os mais fortes? Tudo nos ameaça; tudo nos machuca; tudo nos mata. O que mais natural do que a angústia? Os animais são só protegidos dela, se o são, por uma atenção demasiado estrita ao presente. Mas nós, que nos sabemos mortais? Que só amamos aquilo, ai de nós, que vai morrer? O que mais humano do que a angústia? A morte nos liberta dela, certamente, mas sem a refutar. Certas drogas a tratam, mas sem a desmentir. Verdade da angústia: somos fracos no mundo, e mortais na vida. Expostos a todos os ventos, a todos os riscos, a todos os medos. Um corpo para as feridas ou para as doenças, uma alma para as mágoas, e ambos prometidos à morte, somente… Ficaríamos angustiados por menos. (COMTE-SPONVILLE, 1997: 11-12).
Segundo o comentário de Freitas (2015, p.12-13), neste trecho da obra “Bom dia, angústia!” o filósofo Comte-Sponville aponta a angústia como reveladora do drama da finitude humana. A partir do desconforto, ela expressa a dificuldade que temos em compreender a nossa presença neste mundo, a nossa origem e o nosso destino. O arrebatamento por esse afeto indica o mistério do qual somos constituídos, o terror da perspectiva do fim e a presença de algo que não é definido e que, portanto, torna-se intensamente aflitivo, desconhecido e paradoxal. Segundo Comte-Sponville, a angústia transmite o sentimento de algo inelutável, como de um perigo que não se poderá evitar nem superar, como da morte. Para ele, a angústia é necessária e não tem saída possível.
Já para Pascal, tão angustiante quando o medo da morte, é a insuficiência de respostas para o verdadeiro sentido da vida. “Eis o que observo e o que me perturba. Olho para todos os lados e por toda parte só vejo obscuridade. A natureza nada me oferece que não seja objeto de dúvida e de inquietação. Se eu não visse nada que assinalasse uma Divindade, optaria pela negativa; se em toda parte percebesse um sinal da presença de um Criador, descansaria em paz na fé. No entanto, vendo demais para negá-lo, e de menos para afirmar com segurança, sinto-me num estado lamentável no qual desejei cem vezes que, se um Deus sustenta essa natureza, ela o apontasse sem equívocos; e que, se os sinais que dele nos oferece são ilusórios, que os eliminasse por inteiro; que dissesse tudo ou nada; a fim de que eu visse o partido a ser tomado. Ao passo que, no estado em que estou, ignorando o que sou e o que devo fazer, não conheço nem minha condição nem meu dever. Meu coração inclina-se a perceber onde se acha o verdadeiro bem, para segui-lo; nada me seria mais caro ante a eternidade. Invejo os que vivem com negligência em sua fé, e empregam tão mal um dom de que eu faria, creio, um uso bem diferente” (PASCAL, 2005, p. 90-91).
Pascal, diante da dúvida da existência de Deus, defenderá que o mais racional é apostar na sua existência. Se apostamos na existência de Deus e Ele existir de fato então ganhamos a felicidade infinita e a vida eterna, mas se apostamos que Ele não existe e ele existir então a pena será infinita e eterna.
Søren Kierkegaard (1813-1855), por sua vez, pensará a questão da escolha. Para ele, o modo como fazemos escolhas é determinante da maneira como agimos. Antecipando Sartre, para quem somos condenados à liberdade, Kierkegaard “considerava as decisões morais como escolhas livres e, acima de tudo, subjetivas. De acordo com esse raciocínio, o que determina nosso julgamento é exclusivamente a nossa vontade, mas a liberdade total de escolha nos provoca um sentimento de angústia ou apreensão. Quando compreendemos que temos a liberdade de tomar até as decisões mais terríveis, ficamos angustiados com o que escolher moralmente diante de tantas possibilidades. Kierkegaard descreveu essa angústia como a "vertigem da liberdade", e explicou que, embora ela cause desespero, pode nos livrar de respostas e ações impensadas, pois nos torna mais cientes das escolhas disponíveis. A angústia surge, então, da percepção do limite da existência humana e produz movimento, pois impele o ser humano a tornar-se si mesmo e ter maior senso de sua responsabilidade” (Freitas, 2015, p.96).
A questão da fé também foi pensada por Kierkegaard. Ter fé, para ele, é sustentar a incerteza, o risco, a contradição. “Mas, a definição dada de verdade é uma transcrição da fé. Sem risco não há fé. A fé é justamente a contradição entre a paixão infinita da interioridade e a incerteza objetiva. Se posso conceber a Deus objetivamente, então eu não creio; se quero conservar a fé, devo ter sempre presente no espírito que mantenho a incerteza objetiva, que me encontro na incerteza objetiva ―sobre uma profundidade de setenta mil pés de água e que, não obstante, eu creio (KIERKEGAARD, 1977, p. 190)
Para Sartre, “a existência precede a essência”. Não há uma essência comum que define uma natureza humana universal. O homem, diz ele, primeiro existe, se descobre, surge no mundo; e só depois se define. O homem “se não é definível é porque primeiramente não é nada. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer. Assim, não há natureza humana, visto que não há Deus para a conceber. O homem é, não apenas como ele se concebe, mas como ele quer que seja, como ele se concebe depois da existência, como ele se deseja após este impulso para a existência” (SARTRE, 1970, p. 216).
O indivíduo descobre-se um ser "para si", aberto à possibilidade de construir seu próprio caminho. Está, pois, "condenado a ser livre", sem uma essência ou um modelo que dariam a priori seu destino. Sartre cita um trecho de “Os Irmãos Karamazov” de Dostoiévski: "Se Deus não existe, então tudo é permitido". Os valores não são dados nem por Deus nem pela tradição; é o próprio indivíduo que terá que criá-los.
Porém, ao experimentar a liberdade, e ao sentir-se como um vazio - a consciência é nada -, o indivíduo sente a angústia da escolha. Muitos, entretanto, não suportam a angústia e se escondem na má-fé que, segundo Sartre, é a disposição existencial de quem finge escolher, sem na verdade escolher, é um "autoengano". Na má-fé o indivíduo dissimula para si mesmo, com o objetivo de evitar fazer uma escolha pela qual deva se responsabilizar.
Camus fala do "sentimento do absurdo" que se manifesta para o homem que desperta no mundo sem as ilusões que agarrava para viver. (...) num universo repentinamente privado de ilusões e de luzes (...) o homem se sente um estrangeiro. É um exílio sem solução, porque está privado das lembranças de uma pátria perdida ou da esperança de uma terra prometida. Esse divórcio entre o homem e sua vida, o ator e seu cenário é propriamente o sentimento do absurdo. E como todos os homens sadios já pensaram no seu próprio suicídio, pode-se reconhecer, sem maiores explicações, que há um laço direto entre tal sentimento e a aspiração ao nada (CAMUS, 2008, p. 20).
O sentimento do absurdo, da total falta de sentido, para Camus, pode levar os homens a cogitarem o suicídio. Porém, para Camus, o suicídio não é a resposta diante da ausência de sentido e do absurdo da vida. “que será tanto melhor vivida quanto menos sentido tiver. Viver uma experiência, um destino, é aceitá-lo plenamente. Mas, sabendo-o absurdo, não se viverá esse destino sem fazer de tudo para manter diante de si o absurdo iluminado pela consciência. Tem-se o confronto perpétuo do homem com sua própria escuridão. Ela é a exigência de uma transparência impossível e questiona o mundo em cada segundo. A revolta metafísica é a presença constante do homem diante de si mesmo. Não é aspiração, porque não tem esperança. Essa revolta é apenas a certeza de um destino esmagador, sem a resignação que deveria acompanhá-la (CAMUS, 2008, p. 35-65).
2 Angústia e neurose obsessiva em “Luz de Inverno” sob o olhar psicanalítico
Com base nas contribuições de Freud e Lacan, Puccinelli e Chatelard (2016) propõem uma investigação da Trilogia do Silêncio partindo da teoria da angústia. Segundo as autoras os filmes da trilogia podem ser vistos como paradigmas de um sistema discursivo que não se furta a abordar o real lacaniano, assinalado pelo que não engana: a angústia.
Lacan lembra que Freud insistirá na dimensão essencial dada pelo campo da ficção à nossa experiência do Unheimlich. “Na vida real, este é fugidio demais. A ficção o demonstra bem melhor, chega até a produzi-lo como efeito de maneira mais estável, por ser mais bem articulada. Trata-se de uma espécie de ponto ideal, mas sumamente precioso para nós, já que esse efeito nos permite ver a função da fantasia” (Lacan, 1962-1963/1998d, p. 59). A Trilogia do Silêncio, apesar de estruturar-se pela via da fantasia – um filme –, abre-se assim à não significação, ao deslocamento do sentido, à desestabilização imaginária. "Uma destituição subjetiva característica do estranhamento evocado pela experiência de angústia" (Puccinelli e Chatelard, 2016, p. 242). A Trilogia do Silêncio é, portanto, um lócus ficcional ideal para se observar a experiência da angústia.
Para Freud (1996b [1919]) a angústia manifesta-se sob três paradigmas: a solidão, a escuridão e o silêncio, todos eles presentes na trilogia bergmaniana. "A angústia da solidão de Karin em seu processo psicótico e por sua escolha ética de deixar um mundo para seguir sozinha através de um espelho; a angústia da escuridão neurótica em que vivem o pastor obsessivo e sua seguidora histérica, repetindo sem enxergar o caminho sintomático que seguem sob a luz de inverno; e, finalmente, a angústia do silêncio ecoada pelas personagens no último filme da trilogia. Presas em um lugar de idioma incompreensível e cujo paradigma do feminino apresenta-se em pura devastação" (Puccinelli e Chatelard, 2016, p. 242).
Ainda segundo Puccinelli e Chatelard (Idem, p.246), o que se passa em "Luz de Inverno" excede o campo da precisão e inscreve-se na ordem da pulsão. "A proposição subjetiva dos personagens orienta-se para algo estranho que vai além dos protocolos de preservação da vida e os compele ao constrangimento, desprazer, desamparo. Aproxima-se, portanto, de uma compulsão à repetição, “poderosa o bastante para prevalecer sobre o princípio de prazer" (Freud, 1996b [1919], p. 297-298). Assim, em "Luz de Inverno" a pulsão de morte é enquadrada na fantasia neurótica da religião. Uma fantasia capaz, até mesmo, de preservar o homem da morte, pois se dá como montagem eficaz para acalmar “o medo que o homem sente em relação aos perigos e vicissitudes da vida, quando lhe garantem um fim feliz e lhe oferecem conforto na desventura” (Freud, 1996a [1933], p. 158).
A fantasia do neurótico, todavia, o lança em uma dívida impossível de ser quitada. No caso de “Luz de Inverno”, esta dívida se remete ao Pai. Um pai simbólico, é verdade, “sustentado nas vicissitudes religiosas que oferecem proteção no desamparo, defendem da angústia e cobram dedicação. Tal estratégia encontra raízes nas marcas primeiras da experiência de desamparo infantil, articulando-se às fantasias inconscientes que encontrarão expressão na adesão a sistemas religiosos” (Puccinelli e Chatelard, 2016, p. 246).
Em "Luz de Inverno", lembram as autoras, a referência ao pai é simbólica, mas ainda assim com um peso avassalador, o qual, no entanto, é confrontado através da dúvida da fé. Assim, sob elementos de fé e dúvida, a narrativa bergmaniana ratifica e reconhece o Outro. “Isso porque, ainda que haja uma revolta silente sobre esse pai morto crucificado e vivo no altar – revolta da ordem de uma insurreição que servirá de motor ao enredo e alimentará as estratégias subjetivas diante da angústia de cada personagem entre rituais obsessivos, conversões histéricas –, o ato de negação do Outro pressupõe sua existência anterior, sua afirmação primordial” (Idem, p. 247).
Paradoxalmente, a dúvida, antes de abolir a fé, garante sua anterioridade. Da dupla negação resta o reconhecimento. Para separar-se do Outro, é preciso reconhecê-lo, isto é, em termos lacanianos, é preciso ser capaz de herdar do Outro sua falta.
Desta maneira, prosseguem as autoras, Bergman nos põe perante uma questão lacaniana (Lacan, 1998 [1962-1963]) por excelência, isto é, nós põe diante do impasse do desejo de cada personagem, em sua estrita relação com o desejo do Outro, ou seja, ante a questão angustiante de não saber que objeto se é para o desejo do Outro.
No filme, o outro é Deus a quem o pastor Thomas dedica, através da liturgia religiosa, rituais de atos obsessivos; “Ele mergulha nas obrigações de ritualísticas obsessivas imbuídas da “dúvida que marca o valor de objetos substitutos” (Lacan, 1998 [1962-1963]), p. 347); Märta dedica-se a testemunhar o fracasso de Thomas, tornando-se impossível de ser amada, atendo-se a permanecer insatisfeita” (Puccinelli e Chatelard, 2016, p. 246).
Considerações finais
Antes de concluirmos, vale à pena tentarmos remontar a questão do silêncio de Deus abordada por Bergman também à sua vida privada. A maior parte da educação que ele e seus irmãos receberam da mãe, a enfermeira Karin Åkerblom, e do pai, o pastor luterano Erik Bergman, foi baseada em conceitos como pecado, confissão, castigo, perdão e misericórdia (Freitas, 2015, p. 24).
O castigo era acompanhando pelo silêncio. Os pais não deveriam falar com as crianças até que elas demonstrassem arrependimento. Em uma entrevista ao crítico e cineasta Vilgot Sjöman, para o documentário “Ingmar Bergman faz um filme” (1963), o cineasta afirmou que, para ele, esse era o silêncio de Deus (Freitas, idem, p. 24-25).
Os crimes mais graves eram punidos de forma exemplar: inicialmente eram trazidos à luz. O criminoso confessava em primeira instância, isto é, diante das criadas ou da mãe, ou ainda das inumeráveis mulheres da família que moravam eventualmente em nossa casa. A consequência imediata dessa confissão era o gelo. Ninguém lhe dirigia a palavra ou respondia. Isso fazia, a meu ver, que o culpado desejasse o castigo e o perdão. Depois da refeição principal e do café, as partes eram chamadas ao quarto do meu pai. Ali tinham lugar novos interrogatórios e novas confissões. A seguir mandavam buscar a ripa de bater tapete e o próprio criminoso determinava o número de ripadas que merecia. Quando o castigo estava definido, aparecia uma almofada verde bem estofada, baixavam-se as calças e a cueca, colocava-se o criminoso de bruços sobre a almofada, alguém segurava firme seu pescoço e os golpes eram distribuídos (BERGMAN, 2013, p. 22)Os castigos além, talvez, de influenciarem questões temáticas, podem ter também influenciado Bergman a se tornar um cineasta. O cinema seria em Bergman uma espécie de sublimação?
Havia, além disso, um tipo de castigo espontâneo, que podia ser terrível para uma criança que sofria muito por medo do escuro - prisão mais longa ou mais curta no guarda-roupa. Alma, nossa cozinheira, tinha me contado que dentro do armário havia uma pequena criatura que comia os dedos dos pés de crianças más. Eu ouvia claramente alguma coisa se movendo lá dentro, no escuro; meu terror era total. Não lembro mais o que fazia, provavelmente trepava nas prateleiras ou me pendurava nos cabides para que não me comessem os dedos dos pés. Esse tipo de castigo parou de me assustar quando encontrei uma solução: escondi uma lanterna com uma luz vermelha e uma verde num canto do móvel. Quando me prendiam lá, eu procurava minha lanterna, dirigia o foco de luz para a parede e imaginava que estava no cinema (BERGMAN, 2013, p. 22).Não apenas os castigos foram sublimados, mas também a severa ética protestante, como reconhece o próprio Bergman.
Num nível pessoal, há muitas pessoas que significaram muito para mim. Meu pai e minha mãe foram certamente de vital importância, não apenas por si mesmos, mas porque criaram um mundo contra o qual eu pude me revoltar. Na minha família havia uma atmosfera abundantemente saudável contra a qual eu, uma jovem planta sensível, me rebelei e desprezei. Mas aquele severo lar de classe média me deu uma parede para socar, algo com o qual eu pudesse me afiar. Ao mesmo tempo, minha família me ensinou um grande número de valores - eficiência, pontualidade, senso de responsabilidade financeira - que podem ser “burgueses” mas que são igualmente importantes para um artista. Fazem parte do processo de definir para si mesmo padrões severos. Hoje, como cineasta, sou consciente, trabalhador e extremamente cuidadoso; meus filmes envolvem grande técnica artesanal e meu orgulho é o orgulho de um bom artesão (BERGMAN, 2012, p.158).Se as questões da alma infantil encontraram na magia do cinema um abrigo dos castigos, com o passar do tempo serão as grandes questões da alma humana, como a procura do verdadeiro conhecimento, o medo da morte, a crise de fé, que serão abrigadas no cinema bergmaniano.
É bastante óbvio que o cinema tenha se tornado o meu meio de expressão. Fiz-me compreender numa linguagem que contorna as palavras – que me faltavam- e a música- que não dominava- e a pintura, que me era indiferente. Com o cinema, de repente, tinha a oportunidade de me comunicar com o meu mundo à minha volta numa linguagem que literalmente fala da alma para a alma em frases que fogem do controle do intelecto de forma quase voluptuosa (BERGMAN, 2012, p. 155).Steene (2005) elenca uma série de temas recorrentes no cinema de Bergman e, de certo modo, associados à sua própria experiência existencial singular. São eles, segundo Steene: sondagem existencial que se manifesta ao questionar a figura silenciosa de um deus que parece ter se retirado da vida humana; impiedoso processo de desmascaramento que revela mentiras e convenções ultrapassadas que controlam os seres humanos e seus relacionamentos, no qual a linguagem pode se tornar facilmente uma ferramenta enganosa; representação determinista de pessoas como marionetes indefesas e sem esperança; retrato da mulher como um arquétipo - como a personificação da força e da capacidade de sobrevivência; exposição do artista moderno (geralmente um homem) como egocêntrico e autodestrutivo, frequentemente frustrado na sua profissão e atormentado por demônios (STEENE, 2005, p. 21).
Em “Luz de Inverno”, vimos, o foco esteve na tentativa, angustiante, de perscrutar a figura silenciosa de um deus que parece ter se retirado da vida humana. Já em seu íntimo, Bergman resolveu com essa obra um “conflito doloroso” que o inquietou por décadas, associado às imagens de Deus herdadas da cultura em que cresceu, mas que para as quais não encontrava correspondência em sua experiência. “Com “Luz de Inverno” eu me despedi do debate religioso e apresentei o resultado, o que talvez seja de menos importância para os espectadores do que para mim. O filme é como uma laje de sepultura que coloco sobre um conflito doloroso que, em minha consciência, se manteve em carne viva grande parte da minha vida. As imagens de Deus foram destruídas sem que meu sentimento de ser humano, portador de um destino sagrado, tenha esvaecido. Com este filme, ponho um ponto final no problema” (BERGMAN, 2010, p. 30).
Como dizíamos acima com Lacan, é preciso ser capaz de herdar do Outro sua falta. A ausência, portanto, não significa, necessariamente, não existência. O sagrado está salvo. Ao menos no cinema de Ingmar Bergman.
IMAGEM:
Foto: Filme "Luz de Inverno" 1963 com direção de Ingmar Bergman.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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_________________. “A pele de cobra”. In: CASTAÑEDA, A.; LUCCAS, G.; ZACHARIAS, J. C. (org.). Ingmar Bergman. 1ª ed. Rio de Janeiro: Jurubeba Produções, 2012.
_________________. “Lanterna Mágica”. Tradução de Marion Xavier. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
CAMUS, A. O homem revoltado. Trad. Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 2008.
_________________. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Record, 2008. CHATELARD, D.; RODRIGUES, M. P. V. A travessia da angústia na Trilogia do Silêncio. Jornal de Psicanálise. 49 (91), 241-256. 2016
CHATAIGNER, G. et al. Rostos de Bergman: vida e morte em um plano. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2020.
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KIERKEGAARD, S. Post-Scriptum définitif et non scientifique aux miettes philosophiques. Paris: Editions L’Orante, 1977.
LACAN, J. O seminário. A angústia. Livro 10. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
MESQUITA, R. “Trilogia do Silêncio”. Contracampo. São Paulo: n. 79, 2013.
PASCAL, B. Pensamentos. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
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