Die Verneinung: A Negativa

Lucas LPM

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Die Verneinung: o texto de 1925 de Freud e alguns apontamentos sobre a sua repercussão no pensamento sobre a negatividade em Lacan.

Freud em uma carta de 21 de julho de 1925 a Karl Abraham conta: “escrevi alguns ensaios breves, mas não coisa muito séria. Talvez lhe fale deles mais tarde, se me decidir a reconhecê-los” (Freud, 1965 [1925], p. 362).

Neste texto, comentaremos o primeiro dos três ensaios anunciados por Freud na carta: Die Verneinung. A palavra ‘verneinung’ no título deste ensaio, pequeno, mas denso, recebeu diferentes traduções, tais como “negativa”, “negação” e denegação, esta última proveniente da corrente francesa representada por Lacan e seus seguidores. Daqui em diante, quando nos referirmos à ‘verneinung’, utilizaremos ‘denegação’.

Aparentemente simples, o texto Die Verneinung, comenta Carone (2014), é na verdade um ensaio extremamente complexo, não linear, ousado e descontínuo do ponto de vista temático. Incorpora as grandes descobertas mais recentes de Freud (pulsão de morte e segunda tópica) e realiza um esforço de síntese metapsicológica, trazendo à baila questões como a origem do pensamento e as distinções subjetivo-objetivo, representação-percepção, interno-externo, real-não real.

Freud, na segunda parte do referido texto, elaborará a noção de negação interna. “Negar algo no juízo no fundo significa: isto é uma coisa que eu preferiria reprimir. A condenação é o substituto intelectual da repressão, e o “não” é seu sinal característico, um certificado de origem (...). Por meio do símbolo da negação, o pensamento se liberta das limitações da repressão e se enriquece de conteúdos de que não pode prescindir para o seu desempenho” (Freud, 2011 [1925], p. 11). Freud, diz Safatle (2006, p. 32) “procura a origem psicológica da função intelectual do julgamento, compreendido aqui como afirmação ou negação dos conteúdos do pensamento. Trata-se de compreender a estruturação de uma função intelectual (o ato de julgar) com base no jogo de moções pulsionais primárias. A estratégia consistirá em analisar os julgamentos de atribuição e de existência por meio da dinâmica pulsional”.

Para Freud, encontramos na origem dos processos de julgamento operações que seguem a lógica exclusiva do princípio do prazer. O eu (então na posição de eu-prazer originário – ursprüngliche Lust-Ich) procura se diferenciar pela primeira vez do mundo exterior e das moções pulsionais do isso determinando um princípio de autoidentidade. “O ego-de-prazer originário quer introjetar em si todo o bom e pôr para fora todo o mau. O mau, aquilo que é estranho ao ego e que se encontra fora, é inicialmente idêntico a ele” (Freud, 2011 [1925], p. 12).

A outra decisão a ser tomada pela função do juízo, sobre a existência real de uma coisa representada (prova de realidade), prossegue Freud, é tarefa do ego-de-realidade final, que se desenvolve a partir do ego-de-prazer inicial. Neste ponto, não se trata mais de saber se algo percebido (uma coisa) deve ou não ser acolhido no ego, mas se algo presente no ego como representação pode também ser reencontrado na percepção (realidade).

Uma diferenciação dentro/fora será o resultado de tais operações, demonstrando assim como o ato de julgar é, ao mesmo tempo, primeiro ato de constituição do eu como entidade auto-idêntica. O eu nasce mediante um julgamento. “O momento originário, cujo estatuto é sempre ambíguo na obra freudiana, é marcado pela indiferenciação geral entre interior e exterior, entre eu e mundo. O que levou Freud a afirmar que não existe inicialmente, no indivíduo, uma unidade comparável ao eu. A consequência epistêmica da pressuposição da indiferenciação geral era que: “a oposição entre subjetivo e objetivo não existe inicialmente”” (Freud, GW XIV, p.13 apud Safatle, 2006).

Para produzir tal oposição, o ‘eu’ opera um julgamento de atribuição (que consiste em acordar ou recusar uma qualidade a um sujeito gramatical) a fim de “introjetar tudo que é bom e expulsar para fora de si (Ausstoßung aus dem Ich) tudo o que é mal” (ibidem, p.14 apud Safatle, 2006). Ou seja, o eu não tem de saída à sua disposição um princípio de objetividade, o que o leva a submeter a percepção ao princípio econômico de prazer, operando uma simbolização primordial através de uma Bejahung (afirmação) e expulsando para fora de si tudo o que rompe com o princípio de constância no nível de excitações do aparelho psíquico. Freud falará das “frequentes, múltiplas e inevitáveis sensações de dor e de desprazer que o princípio de prazer, dominando sem limites, exige suprimir e evitar (aufheben und vermeiden)”.

Nesse sentido, “negar algo no julgamento (Etwas im Urteil verneinen) quer dizer no fundo: eis algo que prefiro recalcar” (ibidem, p. 12). Ou seja, a negação interna ao julgamento é expulsão para fora de si (Ausstossung aus dem Ich) que pressupõe a separação radical entre o eu e um real que aparece como traumático. Já no segundo momento, não mais sob a égide do ego-de-prazer inicial, mas do ego-de-realidade não será apenas importante, afirma Freud, “que uma coisa (objeto de satisfação) possua a “boa” qualidade e, portanto, mereça acolhida no ego, mas também que ela esteja no mundo externo de um modo tal que seja possível apossar-se dela em caso de necessidade”.

É notável que, para Freud, a oposição entre subjetivo e objetivo não exista desde o início. Ora, então perguntemos com Freud “onde o ego teria exercitado antes esse tatear, em que lugar aprendeu essa técnica agora empregada nos processos de pensamento? Isso aconteceu na extremidade sensorial do aparelho psíquico, nas percepções sensoriais” (Freud, 2011 [1925], p. 13).

A explicação dada por Freud dos processos primários de percepção, além de elucidar a sua concepção da diferença entre subjetividade e objetividade, esclarece também algo da impossibilidade de apresentação em si dos objetos perdidos de satisfação. “O primeiro e mais imediato objetivo da prova de realidade não é, portanto, o de encontrar na percepção real um objeto correspondente ao representado, mas, sim, o de reencontrá-lo, de se convencer de que ele ainda existe. Uma contribuição ulterior ao distanciamento entre subjetivo e objetivo provém de uma outra faculdade da capacidade de pensar. A reprodução da percepção na representação nem sempre é sua fiel repetição; ela pode ser modificada por omissões, alterada por fusão de diversos elementos. A prova de realidade precisa, então, controlar até onde vão essas deformações. Mas se reconhece como condição para a instalação da prova de realidade que tenham sido perdidos os objetos que um dia proporcionaram uma real satisfação”.

A operação lógica pressuposta pela Verneinung pode ser pensada no quadro da inversão, isto é, como uma passagem no contrário que resulta da posição plena de um termo. “Quando nega de maneira peremptória a representação, o sujeito é levado a afirmar seu oposto. Assim, por exemplo, a negação da mãe é dissolvida na afirmação da presença da representação da mãe no interior do pensamento do analisando” (Safatle, 2006, p. 37).

A concepção da negação entreaberta pela Verneinung, conclui Freud, se ajusta muito bem ao fato de que, “na análise, não se descobre um “não”, vindo do inconsciente, e que o reconhecimento (annerkenung) do inconsciente por parte do ego se expressa numa fórmula negativa”. Não há prova mais forte de que conseguimos descobrir o inconsciente do que quando o analisando reage com a frase: “Isso eu não tinha pensado”, ou “Nisso eu não tinha pensado (nunca)”.

De uma perspectiva clínica, consequentemente, “faz-se necessário compreender que o estatuto do negativo apresenta esta particularidade de ser, ao mesmo tempo, o avesso do positivo, conotação de um tipo de valência contrária ao que é primeiramente afirmado, mas que ele é também revelação de um ser radicalmente outro que este do positivo, de tal maneira que a apreensão deste através dos meios que lhe são apropriados nunca esgotará sua natureza” (Green, 1993, p. 59).

Antes de avançarmos para o tema das repercussões da Verneinung’ no pensamento de Lacan sobre o negativo, retornemos brevemente para a primeira parte do texto de Freud. Ali, ele sugere atenção à maneira como certas resistências aparecem no interior de situações clínicas. Elas têm quase sempre a forma de uma negação dirigida ao analista: “Você acredita que direi algo de ofensivo, mas não é o caso”, “Você acredita que essa mulher em meu sonho é minha mãe, mas não é verdade”. Em termos de intervenção analítica, explica Safatle (2014, p. 23), a observação das negações implica uma problematização na maneira como resistências são analisadas. "Há que se saber que nem tudo se diz sob a forma de determinações positivas, e isso vale também para os modelos de intervenção analítica. No fundo, esse é um dos eixos fundamentais da leitura proposta por Jacques Lacan, então em conflito com os princípios funcionais das práticas terapêuticas ligadas à antiga psicologia do ego. Ou seja, há uma reflexão importante sobre os modelos de análise de resistências induzida pelo texto freudiano".

A Die Verneinung na clínica lacaniana

Para Lacan, o tema da ‘verneinung’ será crucial. Trata-se de perguntar em quais condições a negação própria à falta poderá se transformar em regime privilegiado de apresentação da verdade. Ou melhor, em quais condições a negação não é simplesmente indicação de um não-ser, de uma privação (nihil privativum) ou modo de expulsão do que vai contra o princípio do prazer, mas um modo de presença do Real, compreendido como o que permanece fora da simbolização reflexiva.

No interior da clínica lacaniana, nem todos os movimentos de negação são necessariamente movimentos de destruição (destruição do outro na transferência, reação terapêutica negativa, fantasmas masoquistas, destruição do objeto desejado na neurose obsessiva etc.), assim como nem todos os processos de resistência são figuras da denegação neurótica. Há uma negação que é modo ontológico de presença do Real (Safatle, 2006, p. 13).
Safatle destaca acima justamente a ‘verneinung’ freudiana em operação no pensamento lacaniano. Aliás, como se sabe, nos “Escritos”, Lacan, atento às abordagens de Jean Hyppolite, tratou detidamente da noção.

Hyppolite, assinala Safatle (2006, p. 31), “teve o mérito de compreender a solidariedade entre a noção freudiana de inconsciente e o problema do estatuto das negações. A possibilidade de reconhecimento do que se encontra na posição do inconsciente só é possível por meio de uma noção de negação que não seja nem simples indicação do não-ser, nem cristalização de um processo de expulsão (Ausstossung) de um real que rompe o princípio do prazer. Para que o reconhecimento do inconsciente seja possível, faz-se necessário um modo de negação que seja estrutura de “aparição do ser sob a forma de não ser (de n’être pas)” (Lacan, 1998). Ou seja, a palavra que porta o inconsciente não é uma nomeação positiva, mas organiza-se como uma negação capaz de objetivar o ser do sujeito”. O que Lacan sublinhará ao comentar a fórmula Wo Es war, soll Ich werden:

Ser do não-ente, é assim que advém Eu (Je) como sujeito que se conjuga da dupla aporia de uma substância verdadeira que se abole por seu saber e de um discurso no qual é a morte que sustenta a existência (Lacan, 1998, p. 802).
Para Lacan, nós já encontramos o modo de negação próprio à Verneinung no julgamento de existência: “trata-se da atribuição, não de valor de símbolo, mas de valor de existência” (Lacan, 1981, p.97). Segundo essa maneira de conceber o julgamento de existência, “trata-se de (re-)encontrar um objeto fantasmático cuja representação já se articula em significantes. A Verneinung mostraria que, quando procuro adequar a percepção do objeto à representação fantasmática, quando nego a diferença entre o objeto fantasmático e o objeto da experiência, a tentativa de adequação inverte-se em reconhecimento e insistência da inadequação. Abre-se então a possibilidade de reconhecimento de um espaço de inadequação que, como dirá Lacan, “concerne a relação do sujeito ao ser” (Lacan, 1998, p.382) como negatividade. Um espaço que pode ser reconhecido porque o símbolo de negação próprio à Verneinung já exprime a essência do simbolismo: “nadificação simbólica”, que é presença do ser sob a forma de não ser. O que o sujeito deverá reconhecer em um momento posterior, mas por meio de uma negação” (Safatle, 2006, p. 34).

Encontramo-nos na trilha da definição negativa lacaniana do Real. “Inicialmente, isso levará Lacan, já na sua tese de doutorado, a criticar o estatuto do princípio freudiano de realidade. Em seguida, ele se dedicará ao problema dos destinos possíveis deste Real forcluído em que também se aloja a pulsão que está para-além do princípio do prazer” (idem).

Para Lacan este Real, definido negativamente, “não espera nada da palavra” (E, p.288), ele “é o domínio do que subsiste fora da simbolização” (ibidem, p.388), e não pode ser historicizado. Tais colocações, considera Safatle (2006, p.35), são fundamentais para compreender por que Lacan irá procurar, a partir dos anos 60, procedimentos de formalização para uma negação que não poderá ser suplementada pela simbolização.

Estes procedimentos culminarão, mais tarde, na compreensão do Real como acontecimento traumático o que impõe pensar modos de subjetivação de acontecimentos não suportados por um quadro simbólico reflexivo dado. Fora da simbolização, o Real parece abre espaço para uma “subjetivação acéfala, uma subjetivação sem sujeito, um osso” (Lacan, S XI, p.167). No entanto, adverte Safatle, “é verdade que, ao menos no interior do paradigma da intersubjetividade, Lacan falará às vezes de simbolização do Real. O que indica uma instabilidade no interior da teoria lacaniana que só será resolvida a partir da construção do conceito de objeto a”.

Texto por Elenice Milani.

IMAGEM:

Foto Freud: fotógrafo - Max Halberstadt
Foto Lacan: Foto Reprodução

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Carone, M. “Um claro enigma de Freud”. In: Freud, S. A Negação. Trad. Marilene Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2014

Freud, S. "A negação" (1925). In: Obras completas. O eu e o id, Autobiografia” e outros textos (1923-1925). v. 16. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2011.

________. Obras Completas. v. 19. Rio de Janeiro: Imago, 2006.

________ & Karl Abraham. Briefe: 1907-1926. Frankfurt: S. Fischer Verlag, 1965.

Green, A. Le Travail du négatif. Paris: Minuit, 1993.

Lacan, J. Le séminaire III – Les psychoses. Paris: Seuil, 1981.

________. Le séminaire XI – Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1973.

________ (1998a). Escritos. Introdução ao Comentário de Jean Hyppolite sobre a ‘Verneinung’ de Freud. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 1998a (1954).

________. Escritos. Apêndice I: Comentário falado sobre a “Verneinung” de Freud por Jean Hyppolite. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 1998b (1954).

SAFATLE, V. A paixão do negativo: Lacan e a dialética. São Paulo, Editora UNESP, 2006.

________. “Posfácio”. In: Freud, S. A Negação. Trad. Marilene Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2014

Elenice Milani

Criadora e escritora do site elenicemilani.com.br, Filósofa, Psicanalista Clínica, criadora e coordenadora do grupo Psicanálise e Literatura.


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