A Língua do Outro

Lucas LPM

Foto: arte 1

A língua do outro: breve síntese à abordagem psicanalítica do fenômeno da imigração operada por Charles Melman.

A imigração possui uma dimensão psicanalítica intrínseca. O imigrante é profundamente afetado em sua estrutura subjetiva. Uma maneira de abordar essa questão é pensá-la a partir da linguagem como faz, por exemplo, Charles Melman (1931-2022) quando pensa a condição do imigrante a partir do bilinguismo, ou seja, a partir da distinção da língua que se sabe (língua materna) e da língua que se conhece. O que, afinal, se passa na subjetividade de um sujeito que muda de país e rompe com a língua materna? Procuraremos, a partir de Melman, pensar tal questão.

No mundo há cerca de três mil línguas faladas por duzentos estados politicamente autônomos. Essa distribuição é possível por causa da prevalência do bilinguismo, afirma Melman. Todavia, adverte, o bilinguismo é paradoxal. “O uso destas duas línguas é sempre dissimétrico, uma valendo como língua de mestre, a outra como língua de escravo. Um paradoxo se produz a partir disso e faz desta última a língua materna, que caberia ao sujeito fazer renascer para a mestria” (Melman, 2002, p. 16).

Esse renascimento para a mestria não é um processo simples. Quando a dimensão do Outro é abolida em nome do direito do Mestre, ou seja, quando o significante perde a faculdade de representar para um outro significante, a fim de obter uma função de designação, então, conforme Melman, ele transforma-se no signo que designa, que denuncia para alguém um sujeito de um lugar não mais Outro, mas Estrangeiro. Nesta posição, o estrangeiro que “ex-siste” torna-se aquele que deve ser destruído ou educado. Situação angustiante, sem dúvida, afinal a angústia pode ser pensada como o momento em que o sujeito encontra o real constituído pelo Outro.

Desprovido da compreensão da trama paradoxal do bilinguismo, o sujeito assujeitado, “vive o mundo como um lugar de perdição e não afirma sua liberdade senão à condição de recusar todo e qualquer engajamento neste, sem saber que com esta recusa só repete o dito do Supereu que o guia. Para todo gozo só lhe resta então apreender-se como extra, extraordinário sem nenhuma obra que o justifique” (Melman, 2002, p. 20).

Ainda assim, há possibilidade de uma língua nacional para o outro, pergunta-se Melman. Ele recorrerá a Lacan para mostrar que a questão do Simbólico, do Real e do Imaginário são fundamentais para abordar este problema. “O Simbólico é um sistema onde cada um dos elementos é um símbolo. Um símbolo de que? Um símbolo da perda que desde então organiza a significância de cada um desses elementos. (...) É próprio da linguagem ser organizada em um tal sistema. No sentido lacaniano do termo, a estrutura não quer dizer outra coisa além do que isso nos mostra, isto é, que cada um dos elementos desse sistema é incapaz de apreender esse elemento perdido que funda a significância do sistema. Portanto, é com a instauração desse impossível, daquilo que resiste à tomada pelo Simbólico, a toda mestria, que se individualiza o Real. O Real não é nada mais do que aquilo que escapa à tomada pelo Simbólico. O Imaginário é a representação que vem dar sentido ao que escapa ao Simbólico, ou seja, o Real” (Melman, 1992, p. 22).

A partir desta matriz lacaniana, Melman defenderá que a conjunção do Real, do Simbólico e do Imaginário é inerente ao funcionamento da língua, bem como a tese de que é “necessária a presença do Nome-do-Pai para garantir o enlace entre o Real, o Simbólico e o Imaginário”.

No caso do emigrado, ressalta Melman, o pai que para ele se encontra situado no Real é eminentemente equívoco. Ou é o pai de sua linguagem recalcada por ser emigrado ou o pai da realidade que adentra como imigrante sem conseguir cumprir os deveres de um filho. A separação que ocorre nessa situação dos pais reais, os de casa, os da família, dos pais simbólicos, que organizam a realidade, pode, segundo Melman, acarretar ao sujeito deveres conflitivos e que não satisfazem nem a uns, nem a outros.

Aproximamo-nos da “questão da histérica” (Idem, p. 24). “A questão com a qual se depara a histérica é justamente a de não encontrar no Outro o lugar que seria próprio para conter seu sujeito. Ou seja, a questão da histérica é questão de todos os sujeitos”. E, lembra-nos Melman, mencionando o Freud de Totem e Tabu, a função paterna é a de isolar no Outro um lugar, “onde o sujeito teria que vir, onde encontraria seu abrigo, sua casa”.

Para um emigrado, a realidade apresenta-se, muitas vezes, sustentada por um desejo pelo qual não pagou. Além disso, esse desejo aparece como estrangeiro e a realidade adquire uma função superegóica, lembrando-o que não pagou o preço devido. Por não poder se incluir nesta realidade como parte constituinte ou participante, se vê então numa situação cada vez mais conflitante. Diante de uma “dívida infinita” realiza sacrifícios incessantes para ser aceito, porém sem êxito já que, além de pagar, é preciso que o dom que oferece ao Outro seja simbolicamente admitido. Pode haver também o exato oposto dessa situação que se dá, não pela via sacrificial, mas pela recusa de qualquer pagamento e pela fraude, já que a realidade não acolhe seus dons.

Melman define a língua materna como a que, para aquele que fala, a mãe em sua língua está interditada. Ele considerará que será a língua materna que lembrará a mudez do desejo na qual está enredado o imigrante. “A língua materna é aquela na qual, graças ao jogo do significante, se entretém e se dá a escutar o desejo daquilo que é impossível” (Idem, p. 33).

Mas basta levantar o recalcamento para que o desejo possa enfim se articular na sua língua original (?), questiona Melman. A resposta não é óbvia, pois “o inconsciente não é organizado como uma língua oprimida que bastaria liberar para que pudesse se articular plenamente, mas se organiza como uma linguagem (...) com uma cadeia de elementos feitas de diversas partes do discurso sobre o qual o recalcamento pôde pesar”. Ainda assim, é necessário que o sujeito fale, que conceda voz ao inconsciente para que este eventualmente se deixe escutar através das perturbações que introduz no discurso consciente.

Texto por Elenice Milani.

IMAGEM:

Foto Charles Melman. PRIVATE COLLECTION
Foto Livro: Foto Reprodução

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MELMAN, Charles. Imigrantes: incidências subjetivas das mudanças de língua e país. Trad. Rosane Pereira. Organização e revisão Contardo Calligaris. São Paulo: Escuta, 1992.

Elenice Milani

Criadora e escritora do site elenicemilani.com.br, Filósofa, Psicanalista Clínica, criadora e coordenadora do grupo Psicanálise e Literatura.


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