A Fenda no Instante: O Inconsciente de Lacan

Elenice Milani


A fenda no instante: a abordagem lacaniana do inconsciente em sua estranha temporalidade Pode a psicanálise, sob seus aspectos paradoxais, singulares, aporéticos, ser considerada entre nós como constituindo uma ciência, uma esperança de ciência?” Para responder esta questão, Lacan recorrerá a quatro conceitos freudianos: inconsciente, repetição, transferência e pulsão. 

Neste texto, a partir da leitura do segundo e terceiro capítulos do “Seminário 11”, exploraremos a aproximação de Lacan ao conceito de inconsciente. Em textos posteriores, abordaremos os demais “conceitos fundamentais da psicanálise’. 

Para Lacan “a descoberta freudiana”, ou seja, o inconsciente, nada tem a ver com as formalizações que o precederam, “mesmo as que o acompanhavam, mesmo as que o cercam ainda" (Lacan, 1988, p. 29).

Com Freud, assim considera Lacan, o inconsciente ganhou um estatuto tão importante quanto o do consciente. “A todos esses inconscientes sempre mais ou menos afiliados a uma vontade obscura considerada como primordial, a algo de antes da consciência, o que Freud opõe é a revelação de que, ao nível do inconsciente, há algo homólogo em todos os pontos ao que se passa ao nível do sujeito — isso fala e funciona de modo tão elaborado quanto o do nível consciente, que perde assim o que parecia seu privilégio” (Idem).

Porém, marcando uma diferença do consciente, observará uma dimensão pré-subjetiva do inconsciente. "O importante, para nós, é que vemos aqui o nível em que — antes de qualquer formação do sujeito, de um sujeito que pensa, que se situa aí — isso conta, é contado, e no contado já está o contador. Só depois é que o sujeito tem que se reconhecer ali, reconhecer-se ali como contador" (Idem, p.26).

Mais radicalmente ainda: o inconsciente não seria propriamente humano. As relações que, eventualmente, coincidem com o que denominamos “humanos”, não são elas humanamente determinadas a priori, as são elas próprias determinadas.  Lacan é categórico: “Antes ainda que se estabeleçam relações que sejam propriamente humanas, certas relações já são determinadas. Elas se prendem a tudo que a natureza possa oferecer como suporte, suportes que se dispõem em temas de oposição. A natureza fornece, para dizer o termo, significantes, e esses significantes organizam de modo inaugural as relações humanas, lhes dão as estruturas, e as modelam”.

Uma questão aqui pode ser lançada: se o inconsciente é pré-subjetivo como ele pode ser acessado, objetivado e qualificado cientificamente. Segundo Lacan (1988, p. 26), isso não pode ser feito por “qualquer psicossociologia”, mas pela linguística, “cujo modelo é o jogo combinatório operando em sua espontaneidade, sozinho, de maneira pré-subjetiva — é esta estrutura que dá seu estatuto ao inconsciente. É ela, em cada caso, que nos garante que há sob o termo de inconsciente algo de qualificável, de acessível, de objetivável”.

Neste ponto, já com os conhecimentos produzidos pela linguística e a antropologia estrutural, Lacan dá um passo além de Freud. "O inconsciente é estruturado como uma linguagem — o que se relaciona com um campo que hoje nos é muito mais acessível do que no tempo de Freud. Ilustrarei com algo que é materializado num plano seguramente científico, com esse campo que explora, estrutura, elabora Claude Lévi-Strauss, e que ele rotulou com o nome de pensamento selvagem” (Lacan, 1988, p.25).

Com este aporte teórico é que Lacan poderá operar uma aproximação científica do inconsciente e afirmar que “antes de qualquer experiência, antes de qualquer dedução individual, antes mesmo que se inscrevam as experiências coletivas que só são relacionáveis com as necessidades sociais, algo organiza esse campo, nele inscrevendo as linhas de força iniciais. É a função que Claude Lévi-Strauss nos mostra ser a verdade totêmica, e que reduz sua aparência — a função classificatória primária" (Idem).

Aproximamo-nos do que Lacan chama de “hiância do inconsciente”. “Tropeço, desfalecimento, rachadura. Numa frase pronunciada, escrita, alguma coisa se estatela. Freud fica siderado por esses fenômenos, e é neles que vai procurar o inconsciente. Ali, alguma outra coisa quer se realizar — algo que aparece como intencional, certamente, mas de uma estranha temporalidade. O que se produz nessa hiância, no sentido pleno do termo produzir-se, se apresenta como um achado. É assim, de começo, que a exploração freudiana encontra o que se passa no inconsciente” (Idem, p. 30)

A evocação desta dimensão, prossegue Lacan, deve partir não da ordem do irreal, ou do desreal, mas do “não-realizado”.  "O inconsciente, primeiro, se manifesta para nós como algo que fica em espera na área, eu diria algo de não-nascido. Que o recalque derrame ali alguma coisa, isto não é de se estranhar" (Lacan, 1988, p.26).

Não nascido, não realizado, Lacan dirá ainda não ontológico, mas ainda assim onticamente acessível através de uma fenda que abre e fecha num instante. “O que é ôntico, na função do inconsciente, é a fenda por onde esse algo, cuja aventura em nosso campo parece tão curta, é por um instante trazido à luz - por um instante, pois o segundo tempo, que é de fechamento, dá a essa apreensão um caráter evanescente” (Lacan, 1988, 35)

Apesar de onticamente "evasivo", Lacan, portanto, acredita ser possível aproximar da “estranha temporalidade” do inconsciente, mas é preciso prudência, pois “nunca é sem perigo  que se faz remexer algo nessa zona de larvas, e talvez seja mesmo a posição do analista — se ele a ocupa de verdade — quero dizer, realmente” (Idem, p. 28). 

Lacan preferirá não tocar nas larvas, mas nas ervas. “O resultado de nossa busca do inconsciente vai, ao contrário, no sentido de um certo ressecamento, de redução a um herbário, cujo escantilhonamento é limitado a um registro tornado catálogo racionalizado, a uma classificação que se quereria de bom grado natural” (Lacan, 1988, 34).

Há, pois, para Lacan, um limite, um limite do desejo. “O que a experiência analítica nos permite enunciar, é bem mais a função limitada do desejo. O desejo, mais do que qualquer outro ponto do quinhão humano, encontra em alguma parte seu limite”. E o que limita o desejo?  “O prazer é o que limita o porte do quinhão humano — o princípio do prazer é o princípio de homeostase. O desejo, este, encontra seu cerne, sua proporção fixada, seu limite, e é em relação a esse limite que ele se sustenta como tal, franqueando o limiar imposto pelo princípio do prazer (Lacan, 1988, p. 34-35).

Finalmente, Lacan, em seu trabalho de aproximação do inconsciente, faz uma distinção entre o sujeito da certeza cartesiano e o sujeito do inconsciente da psicanálise. Diferentemente do cogito cartesiano, em que o sujeito existe porque tem a certeza que pensa, na perspectiva aberta pela descoberta freudiana do inconsciente, é possível dizer que o sujeito do inconsciente se manifesta antes mesmo de adentrar o campo da certeza.  

O sujeito do inconsciente antes de ser um sujeito da certeza é um sujeito à procura da verdade. 

Texto por Elenice Milani.

IMAGEM:

Foto : Recorte da tela "Gypsy and Harlequin" de Remedios Varo, 1947
Foto Livro: Foto Reprodução

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Lacan, J. O Seminário livro 11 – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.

Elenice Milani

Criadora e escritora do site elenicemilani.com.br, Filósofa, Psicanalista Clínica, criadora e coordenadora do grupo Psicanálise e Literatura.


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A fenda no instante: a abordagem lacaniana do inconsciente em sua estranha temporalidade

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