O Ato: A Repetição de Lacan
"O Ato": a repetição e suas relações com o real
Lacan, ao final do tópico "Do Sujeito da certeza", no Seminário 11, onde distinguiu o sujeito clássico cartesiano da certeza do sujeito do inconsciente, aprofundando a investigação sobre o conceito de inconsciente, anuncia o próximo conceito a ser abordado: "repetição".
Da próxima vez abordaremos o conceito de repetição, perguntando-nos como concebê-lo, e veremos como é pela repetição, como repetição de decepção, que Freud coordena a experiência, enquanto que decepcionante, com um real que será daí por diante, no campo da ciência, situado como aquilo que o sujeito está condenado a ter em falta.
Durante o tratamento da jovem Dora, Freud se defrontou com um fato novo que desempenhou um papel decisivo no futuro da teoria e da técnica psicanalítica: a “repetição” (Wiederholen). "Enquanto estava preocupado com a recordação dos acontecimentos passados do paciente, este desenvolvia um outro mecanismo, não tão evidente, mas igualmente importante (Garcia-Roza, 1986, p. 21). O paciente, anotou Freud, "não recorda coisa alguma do que esqueceu e recalcou, mas expressa-o pela atuação ou atua-o (acts it out). Ele o reproduz não como lembrança, mas como ação, repete-o sem, naturalmente, saber que o está repetindo".
A partir de então, comenta Garcia-Roza, Freud desdobra a sua escuta e tem a atenção voltada para esse novo mecanismo que passa a ser o referencial privilegiado da prática clínica. "Logo percebemos, escreve Freud, que a transferência é, ela própria, apenas um fragmento da repetição e que a repetição é uma transferência do passado esquecido". "Ora, se admitirmos que transferência é o processo que funda a relação analítica, e se ela é um caso particular da repetição, podemos concluir que o tratamento psicanalítico só tem início quando o paciente produz uma repetição desse tipo com o analista" (Idem, p. 22).
Em "Recordar, repetir e elaborar", Freud retoma o problema da repetição. "O que se repete são protótipos infantis, de tal forma que o analista, ao ser capturado nestas repetições, toma o lugar da imago paterna ou materna, dando lugar à transferência" (Idem). Essa compulsão a repetir padrões arcaicos substitui a recordação, o que faz com que Freud, num primeiro momento, identifique a repetição como resistência. Embora a repetição opere como resistência, ele a considerará, num segundo momento, um importante instrumento na dinâmica do processo psicanalítico, isto é, como fundamento da transferência.
No texto "O estranho" (Das Unheimlich) de 1919, o tema da repetição é mais uma vez retomado. "O estranho é algo que retorna, algo que se repete, mas que ao mesmo tempo se apresenta como diferente" (Idem, p.24). Freud referirá a essa repetição à própria natureza das pulsões, "uma compulsão poderosa o bastante para prevalecer sobre o princípio de prazer".
Finalmente, explica Garcia-Roza, em “Além do princípio de prazer” (1920), a repetição alcança o primeiro plano da teoria. A repetição servirá de fundamento para a explicação da pulsão de morte, "algo mais primitivo, mais elementar e mais pulsional que o princípio de prazer" e que se expressa pela compulsão à repetição. "A repetição é a característica própria da pulsão" (Idem, p. 24).
Antes de adentrarmos à abordagem lacaniana da repetição, façamos duas distinções conceituais imprescindíveis. A “repetição” (Wiederholen) tem relação com a “rememoração” (Erinnerung), muito embora não se confunda jamais com esta. A “repetição” também não é “reprodução”. "Wierderholen não é Reproduzieren" (Lacan, 1985, p. 52). Diferentemente da espontaneidade da reprodução, a repetição aparece numa forma não clara, "em ato", conforme anunciará Lacan.
A descoberta freudiana da repetição, afirma Lacan, está vinculada com a tarefa de mostrar a relação do pensamento com o real. Porém tal relação não é transparente. "Um verdadeiro ato tem sempre uma parte de estrutura, por dizer respeito a um real que não é evidente" (Lacan, 1985, p. 52).
A partir desses pressupostos, Lacan considera que a "repetição" opera uma bipartição estruturante da teoria freudiana, "do princípio do prazer e do princípio de realidade". "Vemos aqui um ponto que o sujeito só pode aproximar-se dividindo-se a si mesmo, num certo número de instâncias. Poder-se-ia dizer o que se diz do reino dividido que aí perece qualquer concepção de unidade do psiquismo, do pretendido psiquismo totalizante, sintetizante, ascendendo para a consciência" (Idem, p. 53).
Não é exagero afirmar que a leitura lacaniana do conceito de repetição produz um verdadeiro abalo no campo psicanalítico e pode ser assim anunciada: a resistência do sujeito se torna "repetição em ato".
Nesta "repetição em ato" o real não evidente se presentificará silencioso, mascarado. Sobre esta questão, o comentário de Garcia-Roza é preciso: "as máscaras não ocultam o real, fazem-no aparecer. O real está além das máscaras, dos disfarces, dos significantes, está além do princípio de prazer. O real está além da repetição, não porque seja contrário a ela, mas porque a funda" (Garcia- Roza, 1986, p. 52).
Lacan recorrerá ao quarto e quinto capítulos da “Física” de Aristóteles para, através dos conceitos de autômaton e tiquê, abordar, respectivamente, a "rede de significantes" e o "encontro do real". A tiquê aristotélica será traduzida por "encontro do real", com aquilo que está para além do autômaton e dos signos regidos pelo princípio do prazer. "O real é o que vige sempre por trás do autômaton" (Lacan, 1985, p. 56).
Lacan então lembra do "Homem dos Lobos" e da busca, quase angustiada, de Freud pelo encontro primeiro, o real, por trás da fantasia. Esse real, diz Lacan, arrasta o sujeito e o força de uma maneira tal que nos impede de confundir a repetição seja com o retorno dos signos seja com a rememoração.
Além disso, a ideia da equivalência da repetição com a transferência deve ser desfeita. Embora seja certo que a repetição esteja na transferência, e que através desta Freud abordou o tema da repetição, "o conceito de repetição nada tem a ver com o de transferência". Isto significa, esclarece Garcia-Roza, que se na transferência dá-se uma repetição de protótipos infantis, essa repetição não é uma reprodução de situações reais vividas pelo paciente, mas equivalente simbólicos do desejo inconsciente" (Garcia-Roza, 1986, p. 23). Em sua verdadeira natureza, sublinha Lacan, a repetição está sempre velada na análise.
Mas então o que se repete? O que se repete, ele responde, "é sempre algo que se produz - a expressão nos diz bastante sua relação com a tiquê - como por acaso. É no que nós, analistas, não nos deixamos jamais tapear, por princípio. No mínimo, apontamos sempre que não é preciso nos deixarmos pegar quando o sujeito nos diz que aconteceu alguma coisa que, naquele dia, o impediu de realizar sua vontade, isto é, de vir à sessão. Não há que tomar as coisas ao pé da declaração do sujeito - na medida em que aquilo com que precisamente temos que trabalhar é com esse tropeção, esse fisgamento, que reencontramos a todo instante" (Lacan, 1985, p. 56). Esta resposta, aparentemente evasiva, serve para Lacan determinar a função da tiquê, do real como encontro, "o encontro enquanto que podendo faltar, enquanto que essencialmente é encontro faltoso".
O real, ele observa, já na origem da experiência analítica, aparece como algo da ordem do inassimilável e na forma de trauma. "Com efeito, o trauma é concebido como devendo ser tamponado pela homeostase subjetivante que orienta todo o funcionamento definido pelo princípio do prazer (Idem, p. 57). Eis nos próximos do cerne do conflito entre o princípio do prazer e o princípio da realidade. Lacan então pergunta: "como pode o sonho, portador do desejo do sujeito, produzir o que faz ressurgir em repetição o trauma"? Ele conclui que o sistema de realidade, por mais desenvolvido que seja, mantém nas redes do princípio do prazer uma parte essencial do que é da ordem do real.
A presença dessa realidade precisa ser perscrutada para que fique definitivamente esclarecido que a vida não pode ser reduzida ao sonho e,
consequentemente, a fórmulas como "a vida é um sonho". "A esta exigência respondem esses pontos radicais no real que chamo de encontros, e que nos fazem conceber a realidade como unterlekt, untertragen, o que em francês se traduziria pelo termo mesmo (...) de souffrance. A realidade está lá em souffrance, lá esperando" (Idem).
Este processo primário, em forma de inconsciente, segundo Lacan, precisa ser apreendido em sua experiência de ruptura, entre a percepção e a consciência, fora das formas apriorísticas do tempo e do espaço como desejou Kant, numa outra cena, talvez “entre o sonho e o despertar” quando o que desperta é "a outra realidade escondida". "O real, é para além do sonho que temos que procurá-lo no que o sonho revestiu, envelopou, nos escondeu" (...), "o real que comanda, mais do que qualquer outra coisa, nossas atividades, e é a
psicanálise que o designa para nós" (Idem, p. 61).
Texto por Elenice Milani.
IMAGEM:
Pintura: Remedios Vera. THE AQUARIUM, 1961
Foto Livro: Foto Reprodução
REFERÊNCIAS
Lacan, J. O Seminário. Livro 11. Jorge Zahar Ed Rio. 2 edição, 1985.
EDUARDO, Mario. A Repetição: De Freud a Lacan. Youtube, 2022.
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