A Pulsão de Lacan

Elenice Milani

 



A Pulsão

Lacan inicia sua abordagem do conceito de pulsão lembrando que o termo Trieb tem uma longa história em diferentes campos como a psicologia e a física. Entretanto, na psicanálise, a partir de Freud, Trieb tem um uso totalmente novo.

A pulsão, para Freud, não é apenas impulso. No artigo de 1915, “Trieb und Triebschicksale”, Freud distingue quatro termos na pulsão: o impulso (“Drang”), a fonte (“Quelle”), o objeto (“Objekt”) e o alvo (“Ziel”).

Lacan lembra que no início do referido artigo, Freud afirma que a pulsão é um “conceito fundamental” (“Grundbegriff”) e acrescenta que o sucesso do conceito de pulsão no campo científico, bem como de todo “Grundbegriff”, é atestado quando traça uma via no real que se trata de demarcar.

Num primeiro momento, o impulso, explica Lacan, é identificado por Freud como uma pura e simples descarga. Porém, essa descarga, quando estamos falando de pulsão, provém de uma “excitação” (“Reiz”) muito específica. Freud, adverte Lacan (1985 [1964], p. 156), “nos faz, sobre isso, e de saída uma observação que vai muito longe. Sem dúvida, aqui também, há estimulação, excitação, para empregar o termo de que ele se serve nesse nível, Reiz, excitação. Mas o Reiz, de que se trata, concernente à pulsão, é diferente de qualquer estimulação proveniente do mundo exterior, é um Reiz interno”.

Portanto, no caso da Trieb, segundo a leitura de Lacan do texto de Freud, há a distinção da excitação interna da excitação externa. A excitação interna não é, pois, a necessidade, tal como acontece quando temos fome ou sede.

Mas como examinar esta excitação própria da Trieb? Lacan explica que Freud procurou examinar o sistema nervoso, onde o real faz sua irrupção. “O real-ich é concebido como suportado, não pelo organismo inteiro, mas pelo sistema nervoso. Ele tem um caráter de sujeito planificado, objetivado” (Lacan, 1985 [1964], p. 156).

Seguindo essas indicações de Freud de apreensão das causas por seus efeitos, Lacan discorrerá sobre seu próprio método. “Sublinho os caracteres de superfície desse campo, tratando-os topologicamente, e tentando mostrar como tomá-lo na forma de uma superfície responde a todas as necessidades de sua manipulação”. Certos elementos deste campo, prossegue Lacan, são “investidos pulsionalmente”.

Este investimento pulsional remeterá Freud, explica Lacan, ao terreno da energia potencial. “A característica da pulsão é de ser uma Konstante Kraft, uma força constante. (...) A primeira coisa que diz Freud da pulsão é (...) que ela não tem dia nem noite, não tem primavera nem outono, que ela não tem subida nem descida. É uma força constante” (Lacan, 1985 [1964], p. 157).

Freud, na outra ponta da cadeia, situa a satisfação (Befriedigund). Mas “o que quer dizer isto, a satisfação da pulsão?”, pergunta-se Lacan. A resposta mais intuitiva seria dizer que a satisfação da pulsão é alcançar o alvo (Ziel), entretanto não é sempre assim. Lacan menciona a sublimação, a terceira das quatro vicissitudes da pulsão, que, para Freud, funciona também como satisfação da pulsão, mas é inibida quanto a seu alvo, muito embora, sublinha Lacan, “a sublimação não é menos a satisfação da pulsão, e isto sem recalcamento” (Lacan, 1985 [1964], p. 157).

A pulsão, portanto, põe em questão o que é próprio da satisfação. Muitos pacientes, diz Lacan, “não se satisfazem com o que são. E, no entanto, sabemos que tudo o que eles são, tudo o que eles vivem, mesmo seus sintomas, depende da satisfação”. Todavia, o que satisfazem nem sempre coincide com o que poderiam se satisfazer. Na verdade, “eles dão satisfação 'a' alguma coisa” e isso ao que eles satisfazem pelas vias do desprazer os faz sofrer. “Até certo ponto é ao sofrer demais que é a única justificativa de nossa intervenção” (Lacan, 1985 [1964], p. 158).

Mesmo nesse caso, segundo Lacan, o alvo da satisfação é atingido, ainda que se trate de uma “satisfação paradoxal”. A categoria freudiana do impossível é colocada então em jogo para descrever o caminho do sujeito entre as “muralhas do impossível”.

Por um lado, o impossível está no real e neste o obstáculo ao princípio do prazer. O real, afirma Lacan, “é o choque, é o fato de que isso não se arranja imediatamente, como quer a mão que se estende para os objetos exteriores. (...) O real se distingue (...) por sua separação do campo do princípio do prazer, por sua dessexualização, pelo fato de que sua economia admite algo de novo, que é justamente o impossível”.

Por outro lado, o impossível também está presente no campo do princípio do prazer. “A ideia de que a função do princípio do prazer é de se satisfazer pela alucinação está aí para ilustrar isso. A pulsão apreendendo seu objeto, aprende de algum modo que não é justamente por aí que ela se satisfaz” (Lacan, 1985 [1964], p. 159), afinal, nenhum objeto pode satisfazer a pulsão, mas um certo prazer, se assim podemos dizer, não objetivo, indireto. “Mesmo que vocês ingurgitem a boca - essa boca que se abre no registro da pulsão - não é pelo alimento que ela se satisfaz, é como se diz, pelo prazer da boca”.

A questão que se abre neste momento é fundamental. Como conceber um objeto da pulsão mediante o saber de que na pulsão o objeto é indiferente? A resposta nos colocará diante de uma noção decisiva para a psicanálise lacaniana, qual seja: o objeto a.

Para a pulsão oral, por exemplo, é evidente que não se trata de modo algum de alimento, nem de lembrança de alimento, nem de eco de alimento, nem de cuidado da mãe, mas de algo que se chama o seio e que parece que vai sozinho porque está na mesma série. Se Freud nos faz essa observação de que o objeto na pulsão não tem nenhuma importância, é provavelmente porque o seio deve ser revisado por inteiro quanto à sua função de objeto. A esse seio, na sua função de objeto, de “objeto a” causa do desejo, tal como eu trago sua noção - devemos dar uma função tal que pudéssemos dizer seu lugar na satisfação da pulsão. A melhor fórmula nos parece ser esta - que a pulsão o contorna” (Lacan, 1985 [1964], p. 160).


Lacan então compara a pulsão com uma montagem, mas não com uma montagem qualquer, concebida visando uma determinada finalidade. Na verdade, a montagem da pulsão, segundo ele, não tem pé nem cabeça, e sua imagem se aproxima de uma obra surrealista. “Creio que a imagem que nos vem mostraria a marcha de um dínamo acoplado na tomada de gás, de onde sai uma pena de pavão que vem fazer cócegas no ventre de uma bela mulher”, mas também, conclui Lacan, os fios do dínamo podem tornar pena de pavão e a tomada do gás passar pela boca da moça.

Texto por Elenice Milani.

IMAGEM:

Foto : Recorte da tela "Papilla Estelar" de Remedios Varo, 1958
Foto Livro: Foto Reprodução

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LACAN, J. O Seminário. Livro 11. Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro, 1985 [1964].

Elenice Milani

Criadora e escritora do site elenicemilani.com.br, Filósofa, Psicanalista Clínica, criadora e coordenadora do grupo Psicanálise e Literatura.


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