O Nó da Tranferência (Parte 2)

Elenice Milani

 


O nó da transferência: uma leitura do conceito de transferência segundo Lacan (Parte 2)

No texto anterior sobre o conceito de transferência, vimos que, para Lacan, há um fechamento do inconsciente que comporta a transferência. Neste texto, veremos "a outra face", "a parte da sombra", "reservada" deste fechamento que Lacan designará pelo "objeto a".

Lacan, antes de adentrar no tema, reforça a sua noção de transferência a fim de refutar fórmulas, segundo ele, errôneas de sua função que impedem a sua determinação e conceituação precisa. “É bem certo que, uma coisa é a transferência, outra coisa o fim terapêutico. A transferência também não se confunde com um simples meio. (...) Quantas vezes vocês lerão fórmulas que vêm associar a transferência com a identificação, enquanto que a identificação é apenas um tempo de parada, uma falsa terminação da análise” (Lacan, 1985 [1964], p. 139).

Laplance e Pontalis (1970, p. 669) observam que a dificuldade de se propor uma definição de transferência se deve ao fato que a noção assumiu para muitos autores uma vasta extensão, “que vai ao ponto de designar o conjunto dos fenômenos que constituem a relação do paciente com o psicanalista e que, nesta medida, veicula, muito mais do que qualquer outra noção, o conjunto das concepções de cada analista sobre o tratamento, o seu objeto, a sua dinâmica, a sua tática, os seus objetivos”.

A transferência, diz Lacan, é ao mesmo tempo obstáculo à rememoração e presentificação do fechamento do inconsciente. Assim, é o “que há para além, (...) a bela por trás dos postigos é o que interessa (...). Trata-se de discernir como algo do sujeito é, por detrás, imantado, imantado a um grau profundo de dissociação, de esquize. É aí que está o ponto-chave em que devemos ver o nó górdio” (Lacan, 1985 [1964], p. 129).

O segundo passo para a abordagem do nó górdio da transferência será, para Lacan, pensá-la como "atualização da realidade do inconsciente". Para tanto, ele assinala, é imprescindível que não omitamos o que é, em primeiro lugar, sublinhado por Freud como estritamente consubstancial à dimensão do inconsciente, ou seja, a sexualidade.

Eis que Lacan fala pela primeira vez do desejo. O desejo, afirma, é justamente o ponto nodal pelo qual a pulsão do inconsciente está ligada à realidade sexual. “A função do desejo é resíduo último do efeito do significante no sujeito. Desidero é o cogito freudiano. É daí, necessariamente, que se institui o essencial do processo primário” (Lacan, 1985 [1964], p. 147).

É, pois, na transferência que devemos ver inscrever-se o peso da realidade sexual, sublinhará Lacan. “Por sua maior parte desconhecida, e, até certo ponto, velada, ela corre sob o que se passa no nível do discurso analítico que é, na medida em que toma forma, o da demanda” (Lacan, 1985 [1964], p. 147).

A transferência seria então transferência de demanda? Uma demanda do inconsciente que se abre, e fecha rapidamente, a outrem, na relação paciente-analista e mesmo vice-versa? Tais questões emergem durante a leitura do texto de Lacan. Não pretendemos solucioná-las ainda, mas propor uma reflexão especulativa para nós próprios e para você leitor(a), assim como uma práxis sedimentada pela teoria, mas que também a sobrevoa experimentalmente.

No nó da transferência encontraremos, portanto, a libido, “o ponto de intersecção, como se diz na lógica”, dirá Lacan apresentando a topologia do “oito interior”.



A imagem do “oito interior”, prossegue Lacan, permite figurar 0 desejo como lugar de junção do campo da demanda, onde se presentificam as sincopes do inconsciente, com a realidade sexual.

Tudo isto depende de uma linha que chamaremos desejo, ligada a demanda, e pela qual se presentifica na experiência a incidência sexual. Esse desejo qual e? Vocês pensam que é aí que eu designo a instância da transferência? Sim e não. Vocês verão que a coisa não anda sozinha, se eu lhes digo que o desejo de que se trata, é o desejo do analista.
Para avançar ainda mais na questão da transferência, Lacan anuncia que abordará o quarto conceito essencial à experiência analítica – o conceito de pulsão. Desta maneira, nossa próxima postagem, visando acompanhar a abordagem lacananiana no âmbito do Seminário 11 dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise, será sobre o conceito de pulsão. Depois, para finalizar nossa trajetória, que já passou pelos conceitos de inconsciente e de repetição, retornaremos à transferência e, finalmente, para uma síntese geral dessa jornada conceitual.
Texto por Elenice Milani.

IMAGEM:

Foto : Recorte da tela "Gypsy and Harlequin" de Remedios Varo, 1947
Foto Livro: Foto Reprodução

REFERÊNCIAS 

LACAN, J. O Seminário. Livro 11. Jorge Zahar Ed. Rio de Janeiro. 2edição, 1985.
LAPLANCE, J.; PONTALIS, J.-B. Vocabulário da Psicanálise. Moraes Editores, Lisboa, 1970.


Elenice Milani

Criadora e escritora do site elenicemilani.com.br, Filósofa, Psicanalista Clínica, criadora e coordenadora do grupo Psicanálise e Literatura.




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