Um farol nas trevas da psicologia profunda: série de comentários sobre a obra O Ego e o Id de Freud.
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“Um farol nas trevas da psicologia profunda”: série de comentários sobre a obra “O Ego e o Id” de Freud.
Apresentaremos ao longo das próximas semanas a obra “O Ego e o Id”, publicada por Sigmund Freud, em 1923. Neste primeiro texto, comentaremos o primeiro tópico intitulado “A consciência e o que é inconsciente”.
Incialmente, Freud retoma e aprofunda com novos desenvolvimentos os conceitos clássicos de consciente e inconsciente que serão cruciais para o andamento da obra em questão.
Ele inicia o texto lembrando que a divisão do psíquico entre consciente e inconsciente é a premissa fundamental da psicanálise. Para Freud, somente a psicologia da consciência, mantida pela filosofia da época, não pode dar conta das questões observadas na prática analítica. Apenas mais tarde, como sabemos, a Teoria Crítica, no âmbito da Escola de Frankfurt, irá incorporar a ideia do inconsciente da Psicanálise. Todavia, no período em questão de formulação das ideias contidas em “O Ego e o Id” para a maior parte dos filósofos a existência de algo psíquico não consciente era simplesmente ilógica.
Na sequência, em debate com os filósofos de seu tempo, Freud apresentará duas noções correntes de inconsciente e anunciará uma descoberta surpreendente.
Uma primeira noção, que será chamada de descritiva, do inconsciente é obtida por intermédio de uma compreensão, também descritiva, do consciente. Assim, consciente, em sentido descritivo, é uma percepção imediata e certa, enquanto que inconsciente coincide com algo latente, capaz de a qualquer momento se tornar consciente.
Sem negar a concepção descritiva do inconsciente, Freud mostrará que sua trajetória, ao considerar experiências que a dinâmica mental desempenha um papel, o conduziu a uma outra concepção de inconsciente. Existem ideias ou processos mentais poderosos, afirma, que podem produzir na vida mental todos os efeitos que as ideias comuns produzem (inclusive certos efeitos que podem, por sua vez, tornar-se conscientes como ideias), embora eles próprios não se tornem conscientes.
Estas “ideias ou processos mentais poderosos” que não se tornam conscientes são objeto da “repressão” que foi instituída por uma força que durante a análise é percebida como “resistência”. Um dos méritos da psicanálise que, para Freud, tornam-na irrefutável, foi justamente ter encontrado um meio de remover a força opositora e tornar consciente essas ideias. “Obtemos assim o nosso conceito de inconsciente. O reprimido é, para nós, o protótipo do inconsciente” (Freud, 1980 [1923], p. 10).
A compreensão da dinâmica psíquica afetará a terminologia. O inconsciente, como vimos, pode ser concebido em dois sentidos: 1) em sentido descritivo: latente, mas capaz de tornar-se consciente e 2) reprimido dinamicamente inconsciente. A solução freudiana será chamar o inconsciente latente em sentido descritivo de “pré-consciente”, restringindo assim o termo “inconsciente” ao reprimido dinamicamente inconsciente.
Da reorganização terminológica acima resultarão três termos: consciente (Cs.), pré-consciente (Pcs.) e inconsciente (Ics). “Podemos agora trabalhar comodamente com nossos três termos, Cs., Pcs., e Ics., enquanto não esquecermos que, no sentido descritivo, há dois tipos de inconsciente, mas, no sentido dinâmico, apenas um. Para fins de exposição, esta distinção pode ser ignorada em alguns casos; noutros, porém ela é, naturalmente, indispensável” (Freud, 1923, p. 11).
Ainda neste curto texto introdutório de o “O Ego e o Id, assistimos Freud desconstruir por dentro a distinção esquemática entre consciente (Cs.) e inconsciente (Ics.) e propor uma nova distinção que considera uma dimensão inconsciente no próprio ego atestada por sua prática analítica. Aqui vale fazermos uma longa citação para termos a dimensão da complexidade da descoberta freudiana e da precisão com que a descreve.
Formamos a ideia de que em cada indivíduo existe uma organização coerente de processos mentais e chamamos a isso o seu ego. É a esse ego que a consciência se acha ligada: o ego controla as abordagens à motilidade - isto é, à descarga de excitações para o mundo externo. Ele é a instância mental que supervisiona todos os seus próprios processos constituintes e que vai dormir à noite, embora ainda exerça a censura sobre os sonhos. Desse ego procedem também as repressões, por meio das quais procura-se excluir certas tendências da mente, não simplesmente da consciência, mas também de outras formas de capacidade e atividade. Na análise, essas tendências que foram deixadas de fora colocam-se em oposição ao ego, e a análise defronta-se com a tarefa de remover as resistências que o ego apresenta contra o preocupar-se com o reprimido. Ora, descobrimos durante a análise que, quando apresentamos certas tarefas ao paciente, ele entra em dificuldades; as suas associações falham quando deveriam estar-se aproximando do reprimido. Dizemos-lhe então que está dominado por uma resistência, mas ele se acha inteiramente inadvertido do fato e, mesmo que adivinhe, por seus sentimentos desprazerosos, que uma resistência encontra-se então em ação nele, não sabe o que é ou como descrevê-la. Entretanto, visto não poder haver dúvida de que essa resistência emana do seu ego e a este pertence, encontramo-nos numa situação imprevista. Deparamo-nos com algo no próprio ego que é também inconsciente, que se comporta exatamente como o reprimido - isto é, que produz efeitos poderosos sem ele próprio ser consciente e que exige um trabalho especial antes de poder ser tornado consciente” (Freud, 1980 [1923]. p.11).A descoberta de “algo no próprio ego que é também inconsciente”, produzirá efeitos na prática analítica. A partir daí, segundo Freud, não é mais possível derivar as neuroses simplesmente de um conflito entre o consciente e o inconsciente sem cairmos em inúmeras dificuldades. Ele propõe a substituição desta antítese por outra, qual seja; “a antítese entre o ego coerente e o reprimido que é expelido (split off) dele”.
Além de incidir na prática analítica, este “terceiro Ics. que não é reprimido” incide na concepção do próprio inconsciente. Freud enuncia essa questão assim: “reconhecemos que o Ics. não coincide com o reprimido; é ainda verdade que o que é reprimido é Ics., mas nem tudo o que é Ics. é reprimido. Também uma parte do ego - e sabem os Céus que parte tão importante - pode ser Ics., indubitavelmente é Ics” (Freud, [1923], p. 12]. Diferentemente do Pcs., acrescenta Freud, esse Ics., não reprimido, e que pertence ao domínio do ego não é facilmente tornado consciente.
Antes de concluirmos, podemos sintetizar por meio de um esquema simples o que Freud apresentou neste curto e denso momento introdutório de “Eu e o ID”.
(A) Consideração de dois sentidos de inconsciente
- Inconsciente em sentido descritivo: inconsciente é o que é latente, mas capaz de tornar-se consciente.
- Inconsciente em sentido dinâmico: Inconsciente é o que é reprimido, mas capaz de tornar-se, com trabalho psicanalítico, consciente.
(B) Determinação dinâmica do inconsciente psicanalítico
- Inconsciente em sentido dinâmico: concepção dinâmica do inconsciente derivada da teoria da repressão.
- O termo inconsciente (Ics.) deverá ser restringido ao reprimido dinamicamente inconsciente.
- O inconsciente latente no sentido descritivo torna-se “Pré-consciente” (Pcs.).
(C) Descoberta de um terceiro sentido para o inconsciente.
- Inconsciente não reprimido no Ego.
A multiplicação de sentidos do inconsciente apresenta-se como uma ameaça de perda de significação e de limitação de conclusões de longo alcance. Esta característica do inconsciente, entretanto, assinala Freud, deve ser assumida positivamente, “pois a propriedade de ser consciente ou não constitui, em última análise, o nosso único farol na treva da psicologia profunda” (Freud, 1923, p. 12). Nas próximas semanas, retornaremos à Freud, visando iluminar ainda mais “O Ego e o ID”.
Texto por Elenice Milani
Referência bibliográfica
FREUD, S. "O Ego e o Id". Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud: Vol. XIX. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1980 [1923].
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