A gênese do Ego por forças desconhecidas e incontroláveis
A gênese do Ego por “forças desconhecidas e incontroláveis”: segundo texto da série de comentários sobre a obra “O Ego e o Id” de Freud
No primeiro texto desta série de comentários sobre a obra “O Ego e o Id” (1923), vimos Freud anunciar uma descoberta que, dado sua sutileza, tornou ainda mais sofisticado o arcabouço conceitual da psicanálise até então vigente: também uma parte do ego pode ser inconsciente (Ics.)
Neste texto, avançaremos com Freud em sua proposta de compreender mais o ego à luz da descoberta anunciada na primeira sessão da obra. “Gostaríamos de aprender mais sobre o ego, agora que sabemos que também ele pode ser inconsciente no sentido correto da palavra” (Freud, 1980 [1923], p. 12).
Antes de adentrar à problemática do ego propriamente dita, Freud procurará tornar-nos conscientes das relações entre a percepção interna e externa e o sistema superficial Pcpt.-Cs.
Esse passo é decisivo, pois como, para Freud, todo o conhecimento está ligado à consciência então é logicamente necessário, antes de mais nada, compreendermos os fundamentos do sistema da percepção e da consciência, os quais darão a base para a compreensão da formação do ego e das relações deste com o id, o qual, logicamente, não pode ser conhecido em si, mas apenas tornado consciente.
O fundamento desse momento da investigação é repleto de termos espaciais e topográficos (Freud utiliza esse termo no texto). Não parece absurdo pensarmos que a identificação de Lacan com a topologia encontra eco de sua razão teórica neste texto de Freud. “Já conhecemos o ponto do qual temos de partir, com relação a isso. Dissemos que a consciência é a superfície do aparelho mental, ou seja, determinamo-la como função de um sistema que, espacialmente, é o primeiro a ser atingido a partir do mundo externo, e espacialmente não apenas no sentido funcional, mas também, nessa ocasião, no sentido de dissecção anatômica. Também nossas investigações devem tomar essa superfície perceptiva como ponto de partida” (Freud, 1908 [1923], p. 12, grifos nossos).
Como neste momento da pesquisa está em questão os fundamentos que deverão conduzir à abordagem do ego, Freud afirma que é mais vantajoso perguntarmos ‘como uma coisa se torna pré-consciente?’ do que como uma coisa se torna consciente?’. Uma coisa se torna pré-consciente, responde Freud (idem, op. cit. 13):
vinculando-se às representações verbais que lhe são correspondentes. Essas representações verbais são resíduos de lembranças; foram antes percepções e, como todos os resíduos mnêmicos, podem tornar-se conscientes de novo. (...) Os resíduos verbais derivam primariamente das percepções auditivas, de maneira que o sistema Pcs. possui, por assim dizer, uma fonte sensória especial. (...) Em essência, uma palavra é, em última análise, o resíduo mnêmico de uma palavra que foi ouvida.Determinadas as relações entre percepção externa e interna, pré-consciência e consciência, Freud adentra ao propósito anunciado logo no início da segunda sessão de “O Ego e o ID”: compreender o ego à partir do saber que ele é também inconsciente.
Tocando, ao menos indiretamente, o pensamento do filósofo David Hume (1711-1776), para quem a natureza humana tem seu início nos dados da impressão empírica, mas também o prolongando, Freud (1980 [1923], p. 15) afirma que o ego tem início “no sistema Pcpt., que é o seu núcleo, e começa por abranger o Pcs., que é adjacente aos resíduos mnêmicos”.
A seguir, a partir da consideração de Georg Groddeck de que nós somos ‘vividos’ por forças desconhecidas e incontroláveis, Freud propõe que chamemos de Ego a entidade cuja gênese se inicia no sistema Pcpt. e começa por ser Pcs.
Lembramos durante a leitura do texto de Freud da imagem do quadro "Impressão, nascer do sol" (1872) de Claude Monet. Ela nos ajuda, se adotarmos por um momento a experiência do pintor como se fosse nossa, a pensarmos esteticamente a experiência de uma impressão das forças do mundo no sistema perceptivo e a relação desta com o ego e com o id.

A partir dos pressupostos acima, que procuramos sinteticamente expor, Freud passa ao exame do “indivíduo como um id psíquico, desconhecido e inconsciente, sobre cuja superfície repousa o ego, desenvolvido a partir de seu núcleo”, ou seja, do sistema Pcpt. O ego, prossegue Freud,
não envolve totalmente o id, mas apenas até o ponto em que o sistema Pcpt. forma a sua [do ego] superfície. O ego não se acha nitidamente separado do id; sua parte inferior funde-se com ele. Mas o reprimido também se funde com o id, e é simplesmente uma parte dele. Ele só se destaca nitidamente do ego pelas resistências da repressão, e pode comunicar-se com o ego através do id. Poderíamos acrescentar, talvez, que o ego usa um ‘receptor acústico’ - de um lado apenas, como aprendemos da anatomia cerebral. Poder-se-ia dizer que o usa de viés” (Freud, op. cit., p. 15).Para esclarecer esse momento da exposição Freud apresentará a famosa representação pictórica:
O ego é aquela parte do id que foi modificada pela influência direta do mundo externo, por intermédio do Pcpt.-Cs.; em certo sentido, é uma extensão da diferenciação de superfície. Além disso, o ego procura aplicar a influência do mundo externo ao id e às tendências deste, e esforça-se por substituir o princípio de prazer, que reina irrestritamente no id, pelo princípio de realidade. Para o ego, a percepção desempenha o papel que no id cabe à pulsão. O ego representa o que pode ser chamado de razão e senso comum, em contraste com o id, que contém as paixões (Freud, op. cit., p. 16).
A imagem da relação do cavaleiro com o cavalo utilizada por Freud para descrever a relação da razão do ego com as paixões do id lembram o discurso de Sócrates no Fedro de Platão.
No princípio do mito dividi cada alma em três partes, sendo dois cavalos, e a terceira, o cocheiro. Assim devemos continuar. Dissemos que um dos cavalos é bom e o outro não. Esclareçamos agora qual é a virtude do bom e a maldade do outro. O cavalo bom tem o corpo harmonioso e bonito; pescoço altivo, focinho curvo, cor branca, olhos pretos; ama a honestidade e é dotado de sobriedade e pudor, amigo como é da opinião certa. Não deve ser fustigado e sim dirigido apenas pelo comando e pela palavra. O outro - o mau - é torto e disforme; segue o caminho sem firmeza; com o pescoço baixo, tem um focinho achatado; seus olhos de coruja são estriados de sangue; é amigo da soberba e da lascívia; tem as orelhas cobertas de pelos. Obedece apenas - a contragosto - ao chicote e ao açoite. Quando o cocheiro vê algo amável, essa visão lhe aquece a alma, enchendo-a de pruridos e desejos. O cavalo obediente ao guia, como sempre, obedece e a si mesmo se refreia. Mas o outro não respeita o freio nem o chicote do condutor (Platão, Fedro).Ainda no texto, Freud antecipa ideias que observamos nas décadas seguintes serem desenvolvidas pela Fenomenologia da Percepção. Ele afirma que, a formação do ego e sua diferenciação a partir do id, além da influência do sistema Pcpt., recebe também influência do corpo.
O próprio corpo de uma pessoa e, acima de tudo, a sua superfície, constitui um lugar de onde podem originar-se sensações tanto externas quanto internas. Ele é visto como qualquer outro objeto, mas, ao tato, produz duas espécies de sensações, uma das quais pode ser equivalente a uma percepção interna. O ego é, primeiro e acima de tudo, um ego corporal; não é simplesmente uma entidade de superfície, mas é, ele próprio, a projeção de uma superfície (Idem, op. cit., p. 16).
Finalmente, Freud conta que em suas análises descobriu que em algumas pessoas as faculdades de autocrítica e consciência são inconscientes e inconscientemente produzem efeitos consideráveis, dentre os quais o sentimento inconsciente de culpa que, em um número expressivo de neuroses, desempenha um papel econômico decisivo e lança poderosos obstáculos no caminho do restabelecimento. Este momento da obra é um prenúncio da próxima sessão que tratará do superego, a qual apresentaremos nas próximas semanas no âmbito de nossa série de texto sobre “O Ego e o Id”.
Texto por Elenice Milani
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREUD, S. O Ego e o Id. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud: Vol. XIX. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1980 [1923].
HUME, D. Tratado da Natureza Humana. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.
LACAN, J. O seminário, livro 10: a angústia (1962-1963). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
Platão. Fedro ou Da Beleza. Tradução e notas de Pinharanda Gomes. Guimarães Editores, Lisboa, 2000.
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