Introdução à relação entre o ego e o superego

Elenice Milani



Introdução à relação entre o ego e o superego: terceiro texto da série de comentários sobre a obra “O Ego e o Id” de Freud


Após demonstrar que o ego pode ser entendido como uma parte do id modificada pela influência do sistema perceptivo, Freud iniciará uma segunda investigação. Ele lembrará de um saber anteriormente estabelecido, de “uma gradação no ego, uma diferenciação dentro dele” a que denominou “ideal do ego” ou, simplesmente, “superego”, acrescentando aí um fato novo a ser explicado, qual seja: a vinculação do superego à consciência. “O fato de que essa parte do ego está menos firmemente vinculada à consciência é a novidade que exige explicação”, anuncia Freud.

Para instaurar esta investigação, retomará algumas noções trabalhadas em momentos anteriores de sua obra como a de melancolia caracterizada pela instalação no interior do ego de um objeto perdido o que indica que a formação do ego possui relação com catexias objetais abandonadas.

No caso de abandono de um objeto sexual, por exemplo, a escolha objetal erótica transforma-se numa alteração do ego o que, segundo Freud, pode ser o meio pelo qual o ego busca obter algum controle, sempre incompleto, sobre o id. “Quando o ego assume as características do objeto, ele está-se forçando, por assim dizer, ao id como um objeto de amor e tentando compensar a perda do id, dizendo: ‘Olhe, você também pode me amar; sou semelhante ao objeto’” (Freud, 1980 [1923], p. 17-18).

A transferência da libido do objeto, acima referida, em libido narcísica implica, prossegue Freud, no abandono de objetivos sexuais, “uma dessexualização”, um tipo de sublimação. Por outro lado, essas “identificações objetais do ego”, se muito numerosas, poderosas e incompatíveis entre si, podem culminar em uma patologia, numa ruptura do ego. Neste sentido, os casos de ‘personalidade múltipla’ poderiam ser o efeito de diferentes identificações que apoderaram da consciência, mas isso não é sempre uma regra. O importante a reter no que diz respeito às catexias objetais abandonadas, pontua Freud, é o fato de que as primeiras identificações efetuadas na mais primitiva infância são gerais e duradouras.

Além da identificação resultante do abandono de uma catexia objetal. Freud identificará uma segunda que remonta à origem do ego e diz respeito a mais importante identificação de um indivíduo, ou seja, a sua identificação com o pai em sua própria pré-história pessoal.

Esta identificação, segundo Freud, não resulta da catexia do objeto, mas trata-se de uma identificação ainda mais primitiva, direta e imediata, muito embora, ele adverte, “as escolhas objetais pertencentes ao primeiro período sexual e relacionadas ao pai e à mãe parecem normalmente encontrar seu desfecho numa identificação desse tipo”, complicada pelo caráter triangular da situação edipiana e pela bissexualidade constitucional de cada indivíduo.

No caso de uma criança do sexo masculino, há precocemente uma identificação com o pai e também uma catexia objetal pela mãe, originalmente associada ao seio. Essa dupla relação segue harmoniosamente até que o pai se torna um obstáculo para os desejos sexuais do menino em relação à mãe, eis a origem do Complexo de Édipo.

O desfecho dessa situação, no caso do menino, passa pela demolição do Complexo de Édipo e pelo abandono da catexia objetal da mãe. No lugar, deve haver uma identificação moderada com a mãe ou uma intensificação da identificação com o pai. De maneira análoga, para Freud, o desfecho da cena edipiana na menina passa pela intensificação de sua identificação com a mãe (ou a instalação de tal identificação pela primeira vez).

Porém, nem sempre o Complexo de Édipo se dá conforme o esquema supracitado. Em razão da bissexualidade originalmente existente na criança, ele deve ser compreendido em seu caráter dúplice, o que nas palavras de Freud “equivale a dizer que um menino não tem simplesmente uma atitude ambivalente para com o pai e uma escolha objetal afetuosa pela mãe, mas que, ao mesmo tempo, também se comporta como uma menina e apresenta uma atitude afetuosa feminina para com o pai e um ciúme e uma hostilidade correspondentes em relação à mãe” (Freud, 1980 [1923], p. 20).

Como tentamos evidenciar até este momento, Freud precisou retomar e aprofundar questões teóricas e clínicas para ter as condições de, finalmente, colocar a questão principal referente à relação do ego com o ideal do ego ou superego. “O amplo resultado geral da fase sexual dominada pelo Complexo de Édipo pode, portanto, ser tomada como sendo a formação de um precipitado no ego, consistente dessas duas identificações unidas uma com a outra de alguma maneira. Esta modificação do ego retém a sua posição especial; ela se confronta com os outros conteúdos do ego como um ideal do ego ou superego” (Freud, 1980 [1923], p. 21).

Portanto, para que o problema do superego seja colocado não basta partir dele, é necessário, como sugere Freud, compreendermos a gênese do ego a partir do id, as pressões do id sobre o ego, os processos de escolha e de abandono de objeto, as identificações, o Complexo de Édipo, suas duplicidades, e suas resoluções. É este o percurso que fez Freud até este momento. No próximo texto, acompanhando-o, adentraremos propriamente ao tema da parte 3 de “O Ego e o ID”, isto é, à questão da relação entre "O ego e o supergo (ideal do ego)".

Elenice Milani

IMAGEM:
Sigmund Freud e seu busto confeccionado pelo escultor Oscar Nemon (1905-1985) Vienna, 1931

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREUD, S. O ego e o id. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud: Vol. XIX. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1980 [1923].

Elenice Milani

Criadora e escritora do site elenicemilani.com.br, Filósofa, Psicanalista Clínica, criadora e coordenadora do grupo Psicanálise e Literatura.






Conheça o meu canal:


Introdução à relação entre o ego e o superego: terceiro texto da série de comentários sobre a obra “O Ego e o Id” de Freud

0 comments: