O ego e o superego
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O ego e o superego: quarto texto da série de comentários sobre a obra “O Ego e o Id” de Freud
Vimos no terceiro texto de nossa série de comentários sobre a obra centenária “O Ego e o Id” que, para Freud, o resultado geral da fase sexual dominada pelo complexo de Édipo pode ser interpretado como sendo a formação de um precipitado no ego, resultante de duas identificações (identificação paterna e uma identificação materna) unidas uma com a outra de alguma maneira. Esta modificação do ego se confronta com os outros conteúdos do ego como um ideal do ego ou superego.
Entretanto, adverte Freud, o superego não é somente o resultado das primeiras escolhas objetais do id, mas também representa uma formação reativa enérgica contra essas escolhas. A relação do superego com o ego não se restringe a um preceito do tipo: "você deveria ser assim (como o seu pai)", mas compreende também a proibição: "você não pode ser assim (como o seu pai)". O superego tem, portanto, um aspecto duplo que revela, desde logo, a função principal do superego de reprimir o complexo de Édipo.
Freud mencionará um importante conceito do filósofo Kant, o “imperativo categórico”, para explicar a forma de manifestação do superego e do seu poder de dominar. Para Kant, lembremos, o imperativo categórico é um princípio formal da razão prática, absoluto e necessário, fundamento último da ação moral, expresso pela seguinte fórmula: “age de tal forma que a norma de tua conduta possa ser tomada como lei”.
A diferenciação do superego a partir do ego, segundo Freud, remonta ao desenvolvimento tanto da espécie como do indivíduo desde a época glacial. O superego tem, portanto, uma origem dupla, sua natureza é biológica e histórica, relacionada com “a duração prolongada, no homem, do desamparo e dependência de sua infância, e com o fato da repressão de seu complexo de Édipo estar vinculada à interrupção do desenvolvimento libidinal pelo período de latência e ao início bifásico da vida sexual do homem” (Freud, 1980 [1923], p.22).
A dissecção analítica operada em o "O ego e o id", com a determinação da estrutura id, ego e superego, e de suas relações, possibilitará Freud responder a uma crítica que a psicanálise recebia naquela época. Veremos que a psicanálise, já em seus anos iniciais, não se furtou ao debate, pelo contrário acolheu as críticas e as refutou com argumentos teóricos e observações clínicos consistentes e concretas. Para os que então se rogavam donos de uma moral pura ao mesmo tempo em que alimentavam superstições sobre a psicanálise Freud então respondeu: “agora que empreendemos a análise do ego, podemos dar uma resposta a todos aqueles cujo senso moral ficou chocado e que se queixaram de que, certamente, deveria haver uma natureza mais alta no homem: ‘Muito certo’, podemos dizer, ‘e aqui temos essa natureza mais alta, neste ideal do ego ou superego, o representante de nossas relações com nossos pais. Quando éramos criancinhas, conhecemos essas naturezas mais elevadas, admiramo-las e tememo-las, e, posteriormente, colocamo-las em nós mesmos” (Freud, 1980 [1923], p.22).
Desta maneira, Freud refutou seus críticos sem a necessidade de recorrer a uma argumentação fantasmagórica baseada em preconceitos, como observamos ainda no presente em certas críticas à psicanálise. Freud, reavaliando conceitos basais da psicanálise, e os rearticulando em conformidade com a ciência do período, simplesmente demonstrou que a psicanálise não pretende erigir uma verdade absoluta sobre a questão moral, mas revelar mais uma perspectiva para apreender o homem, dentre outras possíveis.
O ego, segundo Freud, ao erigir o ideal do ego, dominou o complexo de Édipo e, simultaneamente, colocou-se em sujeição ao id. Neste processo, o ideal do ego aparece como herdeiro do complexo de Édipo, e também expressa os mais intensos impulsos e as mais importantes vicissitudes libidinais do id. Enquanto o ego representa o mundo externo, a realidade, o superego coloca-se como representante do mundo interno, do id.
Através da formação do ideal, afirma Freud, “o que a biologia e as vicissitudes da espécie humana criaram no id e neste deixaram atrás de si, é assumido pelo ego e reexperimentado em relação a si próprio como indivíduo”. Em razão dessa formação, explica Freud, o ideal do ego manterá fortes vínculos com a aquisição filogenética de cada indivíduo - a sua herança arcaica. “O que pertencia à parte mais baixa da vida mental de cada um de nós é transformado, mediante a formação do ideal no que é mais elevado na mente humana pela nossa escala de valores” (Freud, 1980 [1923], p.22-23).
O ideal do ego responde a tudo o que é esperado da mais alta natureza do homem, afirma Freud, fornecendo a seguir uma série de características de suas atividades, relacionadas com religião, moralidade e senso social, que assim elencamos: 1) Como substituto de um anseio pelo pai, ele contém o germe de todas as religiões. 2) O autojulgamento que declara que o ego não alcança o seu ideal, produz o sentimento religioso de humildade. 3) À medida que uma criança cresce, o papel do pai é exercido pelos professores e outras pessoas colocadas em posição de autoridade; suas injunções e proibições permanecem poderosas no ideal do ego e continuam, sob a forma de consciência (conscience), a exercer a censura moral. 4) A tensão entre as exigências da consciência e os desempenhos concretos do ego é experimentada como sentimento de culpa. 5) Os sentimentos sociais repousam em identificações com outras pessoas, na base de possuírem o mesmo ideal do ego.
Religião, moral e senso social são, portanto, para Freud, aquisições filogenéticas a partir do complexo paterno. “A religião e a repressão moral através do processo de dominar o próprio complexo de Édipo, e o sentimento social mediante a necessidade de superar a rivalidade que então permaneceu entre os membros da geração mais nova (...) Mesmo hoje os sentimentos sociais surgem no indivíduo como uma superestrutura construída sobre impulsos de rivalidade ciumenta contra seus irmãos e irmãs” (Freud, 1980 [1923], p.22).
Como o ego é o representante do mundo externo para o id, Freud conclui que as experiências do ego não podem serem herdadas. Porém, caso as experiências do ego, considerando a intensidade e a repetição, transformem-se em experiêcias do id é possível supor algum tipo de herança, pois o id é capaz de ser herdado. Nele “acham-se abrigados resíduos das existências de incontáveis egos; e quando o ego forma o seu superego a partir do id, pode talvez estar apenas revivendo formas de antigos egos e ressuscitando-as”.
Para descrever, essa comunicação do superego com o id Freud citará a pintura a "Batalha dos Hunos" de Wilhelm von Kaulbach. A obra representa a Batalha dos Campos Cataláunicos, travada a 20 de junho de 451 entre o Império Romano do Ocidente, os visigodos e os alanos, sob o comando de Flávio Aécio e Teodorico I, e os hunos, comandados por Átila. Conforme a lenda, a batalha foi tão feroz que as almas dos guerreiros mortos continuaram a peleja no céu. Comparativamente, Freud afirmará que “o combate que outrora lavrou nos estratos mais profundos da mente, e que não chegou ao fim devido à rápida sublimação e identificação, é agora continuado numa região mais alta” (Freud, 1980 [1923], p.24).
Tal qual a imagem da “Batalha dos Hunos”, que teria chegado até às alturas do céu, os primitivos conflitos do ego com as catexias objetais do id podem continuar no superego. Se o ego não dominou o complexo de Édipo a catexia energética deste incidirá numa formação reativa do superego. Neste ponto, escreve Freud, um enigma é solucionado: “a comunicação abundante entre o ideal e esses impulsos do Ics. soluciona o enigma de como é que o próprio ideal pode, em grande parte, permanecer inconsciente e inacessível ao ego”.
Elenice Milani
IMAGEM:
Batalha dos Hunos de Wilhelm von Kaulbach, 1805.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Vimos no terceiro texto de nossa série de comentários sobre a obra centenária “O Ego e o Id” que, para Freud, o resultado geral da fase sexual dominada pelo complexo de Édipo pode ser interpretado como sendo a formação de um precipitado no ego, resultante de duas identificações (identificação paterna e uma identificação materna) unidas uma com a outra de alguma maneira. Esta modificação do ego se confronta com os outros conteúdos do ego como um ideal do ego ou superego.
Entretanto, adverte Freud, o superego não é somente o resultado das primeiras escolhas objetais do id, mas também representa uma formação reativa enérgica contra essas escolhas. A relação do superego com o ego não se restringe a um preceito do tipo: "você deveria ser assim (como o seu pai)", mas compreende também a proibição: "você não pode ser assim (como o seu pai)". O superego tem, portanto, um aspecto duplo que revela, desde logo, a função principal do superego de reprimir o complexo de Édipo.
É claro que a repressão do complexo de Édipo não era tarefa fácil. Os pais da criança, e especialmente o pai, eram percebidos como obstáculo a uma realização dos desejos edipianos, de maneira que o ego infantil fortificou-se para a execução da repressão erguendo esse mesmo obstáculo dentro de si próprio. Para realizar isso, tomou emprestado, por assim dizer, força ao pai, e este empréstimo constituiu um ato extraordinariamente momentoso. O superego retém o caráter do pai, enquanto que quanto mais poderoso o complexo de Édipo e mais rapidamente sucumbir à repressão (sob a influência da autoridade do ensino religioso, da educação escolar e da leitura), mais severa será posteriormente a dominação do superego sobre o ego, sob a forma de consciência (conscience) ou, talvez, de um sentimento inconsciente de culpa (Freud, 1980 [1923], p.21)
Freud mencionará um importante conceito do filósofo Kant, o “imperativo categórico”, para explicar a forma de manifestação do superego e do seu poder de dominar. Para Kant, lembremos, o imperativo categórico é um princípio formal da razão prática, absoluto e necessário, fundamento último da ação moral, expresso pela seguinte fórmula: “age de tal forma que a norma de tua conduta possa ser tomada como lei”.
A diferenciação do superego a partir do ego, segundo Freud, remonta ao desenvolvimento tanto da espécie como do indivíduo desde a época glacial. O superego tem, portanto, uma origem dupla, sua natureza é biológica e histórica, relacionada com “a duração prolongada, no homem, do desamparo e dependência de sua infância, e com o fato da repressão de seu complexo de Édipo estar vinculada à interrupção do desenvolvimento libidinal pelo período de latência e ao início bifásico da vida sexual do homem” (Freud, 1980 [1923], p.22).
A dissecção analítica operada em o "O ego e o id", com a determinação da estrutura id, ego e superego, e de suas relações, possibilitará Freud responder a uma crítica que a psicanálise recebia naquela época. Veremos que a psicanálise, já em seus anos iniciais, não se furtou ao debate, pelo contrário acolheu as críticas e as refutou com argumentos teóricos e observações clínicos consistentes e concretas. Para os que então se rogavam donos de uma moral pura ao mesmo tempo em que alimentavam superstições sobre a psicanálise Freud então respondeu: “agora que empreendemos a análise do ego, podemos dar uma resposta a todos aqueles cujo senso moral ficou chocado e que se queixaram de que, certamente, deveria haver uma natureza mais alta no homem: ‘Muito certo’, podemos dizer, ‘e aqui temos essa natureza mais alta, neste ideal do ego ou superego, o representante de nossas relações com nossos pais. Quando éramos criancinhas, conhecemos essas naturezas mais elevadas, admiramo-las e tememo-las, e, posteriormente, colocamo-las em nós mesmos” (Freud, 1980 [1923], p.22).
Desta maneira, Freud refutou seus críticos sem a necessidade de recorrer a uma argumentação fantasmagórica baseada em preconceitos, como observamos ainda no presente em certas críticas à psicanálise. Freud, reavaliando conceitos basais da psicanálise, e os rearticulando em conformidade com a ciência do período, simplesmente demonstrou que a psicanálise não pretende erigir uma verdade absoluta sobre a questão moral, mas revelar mais uma perspectiva para apreender o homem, dentre outras possíveis.
O ego, segundo Freud, ao erigir o ideal do ego, dominou o complexo de Édipo e, simultaneamente, colocou-se em sujeição ao id. Neste processo, o ideal do ego aparece como herdeiro do complexo de Édipo, e também expressa os mais intensos impulsos e as mais importantes vicissitudes libidinais do id. Enquanto o ego representa o mundo externo, a realidade, o superego coloca-se como representante do mundo interno, do id.
Através da formação do ideal, afirma Freud, “o que a biologia e as vicissitudes da espécie humana criaram no id e neste deixaram atrás de si, é assumido pelo ego e reexperimentado em relação a si próprio como indivíduo”. Em razão dessa formação, explica Freud, o ideal do ego manterá fortes vínculos com a aquisição filogenética de cada indivíduo - a sua herança arcaica. “O que pertencia à parte mais baixa da vida mental de cada um de nós é transformado, mediante a formação do ideal no que é mais elevado na mente humana pela nossa escala de valores” (Freud, 1980 [1923], p.22-23).
O ideal do ego responde a tudo o que é esperado da mais alta natureza do homem, afirma Freud, fornecendo a seguir uma série de características de suas atividades, relacionadas com religião, moralidade e senso social, que assim elencamos: 1) Como substituto de um anseio pelo pai, ele contém o germe de todas as religiões. 2) O autojulgamento que declara que o ego não alcança o seu ideal, produz o sentimento religioso de humildade. 3) À medida que uma criança cresce, o papel do pai é exercido pelos professores e outras pessoas colocadas em posição de autoridade; suas injunções e proibições permanecem poderosas no ideal do ego e continuam, sob a forma de consciência (conscience), a exercer a censura moral. 4) A tensão entre as exigências da consciência e os desempenhos concretos do ego é experimentada como sentimento de culpa. 5) Os sentimentos sociais repousam em identificações com outras pessoas, na base de possuírem o mesmo ideal do ego.
Religião, moral e senso social são, portanto, para Freud, aquisições filogenéticas a partir do complexo paterno. “A religião e a repressão moral através do processo de dominar o próprio complexo de Édipo, e o sentimento social mediante a necessidade de superar a rivalidade que então permaneceu entre os membros da geração mais nova (...) Mesmo hoje os sentimentos sociais surgem no indivíduo como uma superestrutura construída sobre impulsos de rivalidade ciumenta contra seus irmãos e irmãs” (Freud, 1980 [1923], p.22).
Como o ego é o representante do mundo externo para o id, Freud conclui que as experiências do ego não podem serem herdadas. Porém, caso as experiências do ego, considerando a intensidade e a repetição, transformem-se em experiêcias do id é possível supor algum tipo de herança, pois o id é capaz de ser herdado. Nele “acham-se abrigados resíduos das existências de incontáveis egos; e quando o ego forma o seu superego a partir do id, pode talvez estar apenas revivendo formas de antigos egos e ressuscitando-as”.
Para descrever, essa comunicação do superego com o id Freud citará a pintura a "Batalha dos Hunos" de Wilhelm von Kaulbach. A obra representa a Batalha dos Campos Cataláunicos, travada a 20 de junho de 451 entre o Império Romano do Ocidente, os visigodos e os alanos, sob o comando de Flávio Aécio e Teodorico I, e os hunos, comandados por Átila. Conforme a lenda, a batalha foi tão feroz que as almas dos guerreiros mortos continuaram a peleja no céu. Comparativamente, Freud afirmará que “o combate que outrora lavrou nos estratos mais profundos da mente, e que não chegou ao fim devido à rápida sublimação e identificação, é agora continuado numa região mais alta” (Freud, 1980 [1923], p.24).
Tal qual a imagem da “Batalha dos Hunos”, que teria chegado até às alturas do céu, os primitivos conflitos do ego com as catexias objetais do id podem continuar no superego. Se o ego não dominou o complexo de Édipo a catexia energética deste incidirá numa formação reativa do superego. Neste ponto, escreve Freud, um enigma é solucionado: “a comunicação abundante entre o ideal e esses impulsos do Ics. soluciona o enigma de como é que o próprio ideal pode, em grande parte, permanecer inconsciente e inacessível ao ego”.
IMAGEM:
Batalha dos Hunos de Wilhelm von Kaulbach, 1805.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREUD, S. O ego e o id. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud: Vol. XIX. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1980 [1923].
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