O superego na clínica

Elenice Milani

 O superego na clínicaquinto texto da série de comentários sobre a obra O Ego e o Id de Freud 

Vimos em textos anteriores que, para Freud,  o ego é formado, em larga medidaa partir de identificações que ocupam o lugar de catexias abandonadas pelo id; também observamos que a primeira dessas identificações se comporta como uma instância especial no ego e dele se mantém à parte sob a forma dsuperego. Apenas mais tarde, se fortalecido, o ego se tornará mais resistente às influências de suas identificações iniciais.

Por sua vez, o superego deve sua posição em relação ao ego, dado este que, segundo Freud, deve ser considerado sob dois aspectos: por um lado, ele foi a primeira identificação, uma identificação que se efetuou enquanto o ego ainda era fraco; por outro, é o herdeiro do complexo de Édipo e, assim, introduziu os objetos mais significativos no ego. (...) Ele constitui uma lembrança da antiga fraqueza e dependência do ego, e o ego maduro permanece sujeito à sua dominação. Tal como a criança esteve um dia sob a compulsão de obedecer aos pais, assim o ego se submete ao imperativo categórico do seu superego (Freud, 1980 [1923], p. 30).

superego, por ser derivado das primeiras catexias objetais do id a partir do Complexo deÉdipo, desce até as profundezes do id e por isso encontra-se mais distante da consciência que o ego.Tal relação, será examinada teoricamente a partir de uma série de fatos clínicos.

Freud menciona o aparecimento, em determinado momento da análise, de um sentimento de culpa no paciente que encontra sua satisfação na doença e se recusa a abandonar a punição do sofrimento. Ele relata que este sentimento de culpa se expressa como resistência à cura e é difícil de superar. Além disso, é difícil convencer o paciente de que esse é o motivo que está por trás do fato de prosseguir enfermoEle se apega à explicação mais óbvia de que o tratamento pela análise não constitui o remédio certo para o seu caso (Freud, 1980 [1923], p. 31). Estes seriam casos graves de neurose em que a atitude do superego determina a severidade da doença.

        Já a neurose obsessiva e a melancolia são casos conscientes de sentimento de culpa baseados na tensão entre o ego e o superego que o condena. “Oideal do ego demonstra uma severidade particular e com frequência dirige sua ira contra o ego de maneira cruel".

Em algumas formas de neurose obsessiva, o ego do paciente resiste à culpa e busca o apoio do analista para afastá-lo. A análise então demonstrará que o superego está sendo influenciado por processos que permaneceram desconhecidos ao ego. É possível descobrir os impulsos reprimidos que realmente se acham no fundo do sentimento de culpa. Assim, nesse caso, o superego sabia mais do que o ego sobre o id inconsciente.

 na melancolia, o ego não resiste, admite a culpa e submete-se ao castigo. Na neurose obsessivaestavam em jogo impulsos censuráveis fora do ego, enquanto que na melancolia o objeto a que a censurado superego se aplica foi incluído no ego mediante identificação.

Na neurose obsessiva e na melancolia, portanto, o sentimento de culpa é consciente. Na neurose obsessiva, como vimos, a culpa, provinda de impulsos reprimidos, é "super intensamente consciente" para o superego, enquanto o ego, embora consciente dela, resiste à sua imputabilidade. Na melancolia, o ego admite desde logo a culpa.

Além destes casos mencionados, há aqueles em que o sentimento de culpa permanece inconsciente.Na histeria em estados de tipo histéricoconformeFreud, ego desvia uma percepção aflitiva com que as críticas de seu superego o ameaçam, da mesma maneira pela qual costuma desviar uma catexia objetal insuportável - através de um ato derepressão. Nestes casos, o ego é o responsável pelo fato de o sentimento de culpmanter-seinconsciente. Sabemos que, via de regra, o egoefetua repressões a serviço e por ordem do seusuperego; mas este é um caso em que ele voltou a mesma arma contra seu severo feitor (Freud, 1980 [1923], p.32)

Após determinar as formas clínicas de manifestação do sentimento de culpa, Freud procurará responder como o superego se manifesta como crítica produzindo no ego a percepção do sentimento de culpa?

No caso da melancoliaresponde, um superego excessivamente forte ataca o ego de maneira violentacomo se tivesse se apoderado de todo o sadismo do indivíduoO ego é aí influenciado por uma pura pulsão de morte que pode impulsioná-lo à morte, se este não afasta o seu tirano a tempo.

Assim como na melancolia, na neurose obsessiva as censuras da consciência são atormentadoras, porém, sublinha Freud, menos manifestas. Oneurótico dá o passo para a autodestruição, mas écomo se ele estivesse imune ao perigo de suicídio.

que garante a segurança do ego é o fato doobjeto ter sido retido. Na neurose obsessiva tornou-se possível - mediante uma regressão à organização pré-genital - aos impulsos amorosos transformarem-se em impulsos de agressividade contra o objeto. Aqui, o impulsde destruição foi liberado e mais uma vez busca destruir o objeto, ou, pelo menos, parece ter essa intenção. Esses objetivos não foram adotados pelo ego, e este luta contra eles com formações reativas e medidas de precaução; eles permanecem no idO superego, contudo, comporta-se como se o ego fosse responsável por eles. (...) Impotente em ambas as direções, o ego se defende em vão, tanto das instigações do id assassino quanto das censuras da consciência punitiva. Ele consegue manter sob controle pelo menos as ações mais brutais de ambos os lados; o primeiro resultado é um auto-suplício interminável, eeventualmente segue-se uma tortura sistemática do objeto, na medida em que este estiver aoalcance (Freud, 1980 [1923], p.33).

Dum ponto de vista moral, afirma Freudo id é amoral, o ego se esforça para ser moral, e o superego supermoral e, por vezes, este último pode ser tão cruel quanto o id pode ser. Freud acrescenta que quanto mais alguém controla a agressividade exterior mais agressivo se torna em seu superego; e quanto mais a agressividade do superego é controlada mais intensa a agressividade contra o ego. Mesmo uma "moralidade normal e comum", acrescenta, pode ser severamente restritiva, proibidora e castigadora.

O ego, continua Freud, é ameaçado por "três perigos": o mundo externo, a libido do id e a severidade do superego. Esses perigos correspondema três tipos de ansiedade. Como criatura fronteiriça, o ego tenta efetuar mediação entre o mundo e o id, tornar o id dócil ao mundo e, por meio de sua atividade muscular, fazer o mundo coincidir com os desejos do id. De fato, ele se comporta como o médico durante um tratamento analítico: oferece-se, com a atenção que concede ao mundo real, como um objeto libidinal para o id, e visa a ligar a libido do id a si próprio. Ele não é apenas um auxiliar do id; é também um escravo submisso que corteja o amor de seu senhor. Sempre que possível, tenta permanecer em bons termos com o id; veste as ordens Ics. do id com suas racionalizações Pcs.; finge que o id está mostrando obediência às admonições da realidade,mesmo quando, de fato, aquele permanece obstinado e inflexível; disfarça os conflitos do id com arealidade e, se possível, também os seus conflitos com o superego. Em sua posição a meio caminhoentre o id e a realidade, muito frequentemente se rende à tentação de tornar-se sicofanta, oportunista e mentiroso, tal como um político que percebe a verdade, mas deseja manter seu lugar no favor do povo (Freud, 1980 [1923], p.35).

Com relação às duas classes de pulsõesou seja,a pulsão de vida e a pulsão de morte, posição do ego é parcialCom o seu trabalho de identificação sublimaçãoego, afirma Freudauxilia a pulsão de morte do id a controlar a libido, mas, ao proceder assim, arrisca-se a tornar-se objeto da pulsão de morte e de perecer. Para realizar esta arriscadafunçãoego precisa antes acumular libido,tornando-se assim representante de Eros e, portanto,do que quer viver e ser amado.

O ego, prossegue Freud, é a sede real da ansiedade. Ameaçado pelos perigos do mundo externo, pela libido do id e pela severidade do superego, o ego à princípio desenvolve o reflexo de fuga retirando sua própria catexia da percepção ameaçadora ou do processo considerado no id, e emitindo-a como ansiedade. Mais tarde essa reaçãoprimitiva é substituída pela efetivação de catexias protetoras (o mecanismo das fobias). 

No que diz respeito ao mundo externo e ao libidinal, o medo do ego, orientado pelo princípio de prazer, explica Freud, é o medo de ser esmagado ou aniquilado.  Já com relação ao medo que o ego tem do superego o que se oculta é o medo da consciência.O ser superior, que se transformou no ideal do ego, outrora ameaçara de castração, e esse temor dacastração é provavelmente o núcleo em torno do qual o medo subsequente da consciência se agrupou; é esse temor que persiste como medo da consciência(Freud, 1980 [1923], p.35-36).

Em passant, Freud aborda “o medo da morteum problema difícil para a psicanálise, pois a morte é um conceito abstrato com conteúdo negativo para o qual nenhum correlativo inconsciente pode serencontrado. A hipótese que lançará sobre esta questão é que o medo da morte é algo que ocorre entre o ego e o superego. Através de uma manifestação neurótica, a melancolia, ele procurará compreender uma normal acerca do medo da morte. O medo da morte na melancolia só admite uma explicação: que o próprio ego se abandona porque sesente odiado e perseguido pelo superego, ao invés de amado.

Para concluirFreud retorna à análise do id. O id, diz ele, não é incapaz de demonstrar ao ego amor ou ódio, não é também capaz de dizer o que quer, não alcançou uma vontade únicacom as seguintes palavras, evocadoras de Eros, Freud conclui “O Ego e o Id”, obra de 1923, decisiva para os rumos que a psicanálise tomaria ao longo do século XX, e mesmopara os que seguirá no  XXI.

 

Eros e Tânatos lutam dentro dele; um grupo de pulsões defende-se contra a outra. Seria possível representar o id como se achando sob o domínio das silenciosas, mas poderosos pulsões de morte, que desejam ficar em paz e (incitadas pelo princípio de prazer) fazer repousar Eros, o promotor de desordens; mas talvez isso seja desvalorizar o papel desempenhado por Eros.


Elenice Milani

 

Referência bibliográfica

 

FREUD, S. O ego e o idEdição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud: Vol. XIX. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1980 [1923].

 


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