Freud com Joyce: introdução ao conceito de sinthome de Lacan

Elenice Milani


“Freud com Joyceintrodução ao conceito de sinthome de Lacan


Este texto inaugura uma série de leituras do Seminário 23 de Lacan, “Le sinthome”, traduzido na edição brasileira (2007) como “O Sinthoma”. À título de introdução, apresentamos alguns comentários de especialistas em Lacanfeitos sobre a referida obra.

Antes de prosseguirmos, salientamos que nos textos que apresentaremos ao longo das próximas semanas não traduziremos “sinthome” por “sinthoma”como o fez o tradutor da edição brasileira (2007). A palavra-conceito “sinthome” mobilizada por Lacan não tem o mesmo sentido que “sintoma”. Ainda que o tradutor da obra para o português utilize, adequadamente, a letra “h” para distinguir “sinthoma” de “sintoma”, a sonoridade de “sintoma” ainda é mantida, e as “propriedades fonêmicas do significante” é justamente um dostemas fundamentais do “Seminário 23”, como bem observa Maliska (2013, p.114-115):

No Seminário 23, Lacan se deixa helenizar ─ para utilizar a expressão de Sollers mencionada por Lacan (2007, p. 12) ─ ao modo de Joyce, pelas propriedades fonêmicas do significante. Lacan se entrega a polifonia do significante, escutando mais os seus sons do que seus sentidos e, com isso, “inaugura” uma clínica que já não se resume tão somente a escutar,através do significante, o significado reprimido no inconsciente. Lacan busca marcar a vacuidade dos significados, a intangibilidade do inconsciente, restando para o analista operar, ora com o deslizamento dos significantes (pela via simbólica), ora com os restos vocálicos, com a letra que denota (a)gramaticalidade do inconsciente, nos fragmentos da via real que conduz à completa ausência de sentidos.
Conforme o “Dictionnaire alphabetique et analogique de la langue française”, “sinthome” é a grafia antiga do francês, precisamente do ano de 1502, correspondendo contemporaneamente à palavra symptome ("sintoma").Porém, veremos ao longo de nosso estudo, ao recorrer à palavra “sinthome”Lacan visa criar um conceito que não corresponde ao conceito de “sintoma”.

O título do primeiro texto do “Seminário 23”, “Do uso lógico do sinthome ou Freud com Joyce”, já anuncia algo da operação lacaniana que se seguirá. A operação é dupla. Lacan se inspirará na inventividade literária de Joyce, nos seus trocadilhos e nas suas palavras-valise para: 1) produzir uma distinção doconceito clássico de sintoma; 2) criar um novo conceito psicanalítico.

Neste momento do pensamento de Lacan, ao menos no que diz respeito ao “sinthome”, Joyce tem tanta importância quanto Freud. Roberto Harari (2003), inclusive, falará em “psicanálise pós-joyceana” baseando-se no artigo “Joyce, o Sintoma” (2003), em que Lacan utiliza a expressão “ser pós-joyceano”, acenando para outras possibilidades de gozo. “Que Joyce tenha gozado por escrever Finnegans Wake, isso se percebe. (...) Ser pós-joyceano e sabê-lo. Só hádespertar por meio desse gozo” (Lacan, 2003, p. 566).

A psicanálise pós-joyceana incorpora o “sinthome”, ou o “sinthomen” como traduz Harari (2003), para, através de uma superação do “sintoma” da miséria neurótica, adentrar a ordem da invenção, de um saber fazer ali com (savoir y faire avec) aquilo que outrora poderia ser a matéria para uma patologia.

De certo modo, o sinthome conduz a isso, a um saber, ou mais exatamente, a um saber fazer ali com [savoir y faire avec]. Isso designa não somente um saber e tão pouco um fazer, mas um saber inconsciente que produz como efeito de análise um fazer [savoir faire] com aquilo ali [y avec] que outrora gerava sintoma e que agora, através do sinthome, pode gerar uma outra coisa que não a miséria neurótica do sintoma(Maliska, 2013, p. 114)
A obra de Joyce, notadamente o “Finnegans Wake” (1939), mas também “Um retrato do artista quando jovem” e “Ulisses” (1922), além de abrir a possibilidade de injetar uma diferenciação na “lalangue” de Lacan e dar-lhe suporte para a criação formal do conceito de “sinthome”, fornece também elementos essenciais de seu conteúdo e, consequentemente, para seu funcionamento no âmbito da clínica.

Nas próximas semanas, retornaremos ao “Seminário 23” e ao conceito de“sinthome”, buscando a cada texto uma melhor amarração, afinal o “sinthome”, como veremos mais detalhadamente, integra como quarto elemento a série Simbólico, Real e Imaginário e a amarra.

Texto por Elenice Milani.

IMAGEM:

Jacques Lacan e o Seminário 23

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

HARARI, R. Como se chama James Joyce? A partir do Seminário Le sinthome de J. Lacan. Salvador e Rio de Janeiro: Ágalma, 2003.
LACAN, J. J. “Joyce, o sintoma”: In: _____. Outros escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003. p.560-566.
_____. O Seminário. Livro 23. O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
LE ROBERT. Dictionnaire alphabetique et analogique de la langue française. Paris, Societé du Nouveau Littré, 1974.
MALISKA, M.E. “A psicanalise pós-joyceana: o conceito de sinthome em Lacan a partir das contribuições de Joyce”. Revista Graphos. V. 15, n° 2, 2013.

Elenice Milani

Criadora e escritora do site elenicemilani.com.br, Filósofa, Psicanalista Clínica, criadora e coordenadora do grupo Psicanálise e Literatura.


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