Sinthome: o laço enigmático do imaginário, do simbólico e do real
Sinthome: o laço enigmático do imaginário, do simbólico e do real
No primeiro texto da série sobre o conceito de “sinthome”, ou “sinthoma”como consta na tradução para o português, à título de introdução, abordarmos, recorrendo principalmente aos comentadores, o capítulo “Do uso lógico do sinthoma: Freud com Joyce” que abre o “Seminário 23”: “Le sinthome”.
Neste texto, faremos o inverso: retornaremos ao capítulo I da primeira parte do “Seminário 23” e nos deteremos no próprio dizer de Lacan para, na medida do possível, comentá-lo, ora a partir dos comentadores ora a partir de nossa própria experiência com o universo conceitual lacaniano.
Compreender o conceito de sinthome não é tarefa fácil. Lacan, como o leitor constatará, logo no início do “Seminário 23” abre diversas portas e não sabemos bem por qual entrar para acessar o sinthome. Neste texto, tentaremos a porta do “equívoco".
Lacan menciona que é o ‘equívoco’ que pode “liberar algo do sinthome” e que “é unicamente pelo equívoco que a interpretação opera. É preciso que haja alguma coisa no significante que ressoe” (Lacan, 2007, p.18). Se, de fato, é esta a porta que nos conduzirá ao sinthome ainda não podemos afirmar, mas ao menos é uma porta que não conduz a uma parede. Talvez esta porta nos leve a outra e, neste processo, a uma compreensão do conceito em questão.
Com esta porta aberta, o passo agora é acreditar que a fala tem efeito, e que “as pulsões são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer” que para ressoar necessita que este corpo lhe seja sensível. “É um fato que ele o é”, afirma Lacan. “Porque o corpo tem alguns orifícios, dos quais o mais importante é o ouvido, porque ele não pode se tapar, se cerrar, se fechar. É por esse viés que, no corpo, responde o que chamei de voz” (Lacan, 2007, p.18). Corpo, ouvido, voz, o que mais? O olhar que faz concorrência ao ouvido.
Ora temos um corpo aqui e este corpo, diz Lacan, tem potência de cativação. Neste ponto, ele ressoa o pensamento do filósofo Spinoza para quem o corpo tem potência de afetar e de ser afetado.
Esse corpo é de um homem, ou melhor, de um “ser que, ao fazer nó, julga ser homem”. Nesta altura, Lacan, em poucas linhas, saltou centenas de anos, passou pela Teoria dos Conjuntos de Cantor e está no “nó borromeano”. Aqui só podemos mencionar o quão longe cientificamente a porta do ‘equívoco’ pode nos conduzir. Não temos condição, matematicamente, de abordar a Teoria dosConjuntos, ou os “elos borromeanos, por exemplo, mas podemos continuar a seguir Lacan em sua abordagem que não dispensa a ciência. Ora, se para alguns, ansiosos pelos holofotes da ‘sociedade do espetáculo’, a psicanálise não é ciência pa-ciência. Talvez não seja mesmo em linhas rígidas e em corpos enrijecidos, mas isso não quer dizer que a psicanálise em seu savoir faire dispense a ciênciae seus fundamentos para fazer ressoar ainda outra coisa. Fazer com a ciência pode ser ainda mais interessante para que o novo surja, não? E justamente, para Lacan, Joyce seria um caso de um ser que fez algo inventivo, da ordem de um saber fazer ali com (savoir y faire avec) aquilo que outrora poderia gerar uma psicose.
Mas, continuemos nos “aneis borromeanos”, conceito e imagemmatemática que Lacan utiliza para pensar a série simbólico, real e imaginário.Lembremos: em topologia matemática, o nó borromeano consiste em três círculos, ou anéis, interligados de forma que a remoção de qualquer um deles desata simultaneamente todos os três. Lacan, nota exatamente esse dado, isto é, que o rompimento de apenas um destes anéis torna os outros dois, quaisquer que sejam eles, livres um do outro. O nome “borromeano” tem sua origem no brasão de armas da família renascentista italiana dos Borromeus, lembra Lacanantes de prosseguir.
A discussão que fundamentará o “Seminário 23”é enunciada. Além do anel do simbólico, do imaginário e do real há um quarto que os amarra: o do sinthome.
Digo que é preciso supor tetrádico 0 que faz 0 laço borromeano -perversão quer dizer apenas versão em direção ao pai, em suma, o pai é um sintoma ou um sinthome, se quiserem. Estabelecer o laço enigmáticodo imaginário, do simbólico e do real implica ou supõe a ex-sistência do sintoma. A configuração seguinte (...) esquematiza 0 imaginário, o simbólico e 0 real como separados uns dos outros. Vocês têm a possibilidade de ligá-los. Com o que? Com o sinthome, o quarto.

Segundo Neuter (1994) o “nó borromeano” constitui uma chave naselaborações lacanianas sobre o sintoma, iniciadas nos anos 1950, e continuamente reelaboradas ao longo dos anos 1970 com a introdução doconceito de sinthome. Na lógica do nó borromeano, comenta Neuter, é possível remediar eventuais dissociações dos três aros. “Essa lógica nodal permite, de fato, pensar uma prótese, uma possibilidade de prótese que se pode também observar na clínica. É aliás trabalhando sobre a biografia de Joyce que Lacan chegou a esta função protética possível de certos sintomas. Assim, em caso de “lapsus” de nó situado num dos cruzamentos do Real e do Simbólico, para prevenir o desatamento do ato do Imaginário, é nodalmente possível reenodar Real e Simbólico por meio de um quarto aro. Lacan situa aí o sinthome”(Neuter, 1994, p. 249-250).
Ainda segundo Neuter a escritura de Joyce tem, para Lacan, “valor sinthomatico” e “função de prótese”. A atividade sinthomatica de escritor fornece a Joyce um ego de substituição e, por ela, ele faz o seu nome. O sinthome, assinala Neuter (1994, p. 251), tem relação com o Nome-do-Pai, “vindo de alguma forma substituir o enfraquecimento da metáfora deste”. Nas palavras do próprio Lacan: “o complexo Édipo é, como tal, um sintoma. É na medida em que Nome-do-Pai é o Pai do Nome, que tudo se sustenta” (...). OOutro do qual se trata manifesta-se em Joyce, uma vez que ele, no final das contas, é sobrecarregado de pai. Na medida em que esse pai, como se verifica em “Ulisses”, para subsistir, deve ser sustentado, Joyce, através de sua arte - essa arte que, desde o recôndito dos tempos, aparece-nos sempre como nascida do artesão -, não apenas faz sua família subsistir, como vai torná-la, se podemos dizer assim, ilustre”(Lacan, 2007, p.23).
Ficamos, diante do “caso Joyce”, tentados a aproximar o sinthome aoconceito freudiano de sublimação, porém, eles não são equivalentes. Segundo Falbo (2017), uma das razões para Lacan falar em sinthoma e não em sublimação, no momento de sua obra em que aborda a Teoria os Nós a partir de Joyce, está no fato de que a sublimação não se encaminha, necessariamente, para a edificação de uma amarração. “Na abordagem do sinthoma, de modo diverso dos problemas recortados pela sublimação, a obra é visada como produção do sujeito e desempenha uma função e enodamento para aquele que a cria, dando-lhe sustentação e tratamento para o excesso que o acossa” (Falbo, 2017, p.11).
Finalmente, dirá Lacan na conclusão do seminário de abertura da série de seminários sobre o sinthome: “anuncio o que será minha interrogação deste ano (1975) sobre a arte. Em que o artifício pode visar expressamente o que se apresenta de início como sintoma? Em que a arte, o artesanato, pode desfazer, se assim posso dizer, o que se impõe do sintoma? A saber, a verdade”.
Texto por Elenice Milani.
IMAGEM:
Seminário 23 e anéis borromeanos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
FALBO, G. “A-bordagens da arte em psicanálise: Sublimação, psicobiografia e sinthoma”. Opção Lacaniana Online, n. 22, 2017.
LACAN, J. O Seminário. Livro 23. O Sinthoma [1975-1976]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
LACAN, J. J. “Joyce, o sintoma”: In: _____. Outros escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003. p.560-566.
NEUTER, P. “Do sintoma ao sinthoma”. In: Dicionário de. Psicanálise Freud e Lacan (Vol.1). Ed. Ágalma: Salvador, 1994.
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