A guerra das interpretações e o futuro do humano: uma mensagem natalina a partir da correspondência entre Einstein e Freud.

Elenice Milani

 


A guerra das interpretações e o futuro do humano: uma mensagem natalina a partir da correspondência entre Einstein e Freud.

No clássico texto de 1930, "O mal-estar na civilização", Freud não tinha dúvida da existência de um pendor à agressão entre os homens. A existência dessa tendência à agressão, dizia Freud, que podemos sentir em nós mesmos e pressupor nos demais, é o fator que perturba nossa relação com o próximo e obriga a civilização a seus grandes dispêndios. Devido a essa hostilidade primária entre os homens, a sociedade é permanentemente ameaçada de desintegração" (Freud, 2010 [1930], p. 50).

Dois anos depois, como que repercutindo certas questõescomo a citada,presentes em O mal-estar na civilização, Freud e Einstein iniciam uma troca de cartas em que tratam do problema da guerra. A primeira grande guerra tinhase findado já há alguns anos e a segunda estava por vir. Seriam os períodos entreguerras as ocasiões de tentar entender as motivações dos homens de guerrearem e, principalmente, de alcançar os meios de evitar que ajam dessa maneira mortal?

Em julho de 1932Einstein escreve à Freud elogiando a sua compreensão interna das obscuras regiões da vontade e do sentimento humano” e colocando o problema que ambos tratarão: existe alguma forma de livrar a humanidade da ameaça de guerra? É do conhecimento geral que, com o progresso da ciência de nossos dias, esse tema adquiriu significado de assunto de vida ou morte para a civilização, tal como a conhecemos; não obstante, apesar de todo o empenho demonstrado, todas as tentativas de solucioná-lo terminaram em lamentável fracasso, escreve Einstein.

Com profundas dúvidas para o problema da guerrae sem nutrir ilusões arespeito do humano e de suas idiossincrasiasEinstein proporá instituição, por meio de acordo internacional, de um organismo legislativo e judiciário para arbitrar todo conflito que surja entre as nações. Cada nação submeter-se-ia à obediência às ordens emanadas desse organismo legislativo, a recorrer às suas decisões em todos os litígios, a aceitar irrestritamente suas decisões e a pôr em prática todas as medidas que o tribunal considerasse necessárias para a execução de seus decretos.

Em dado momento, Einstein menciona um estado de psicose coletivaque emerge em certas circunstâncias anormais, segundo ele um enigma que só um especialista na ciência das pulsões humanas pode resolver. É possível controlar a evolução da mente do homem, de modo a torná-lo à prova das psicoses do ódio e da destrutividade?”, ele então pergunta à Freud.

A resposta de Freud será dada em setembro do mesmo ano. Freud parte da constatação de que é um princípio geral a resolução dos conflitos de interesses entre os homens por intermédio da violência. É isto o que se passa em todo o reino animal, do qual o homem não tem motivo por que se excluir(Freud, 2005[1932], p. 30)Ele concluirá esse primeiro argumento afirmando que esse regime de violência foi atenuado ao longo do tempo com o progressivosurgimento da lei e do direito, muito embora tenha ciência de que a lei é aindaviolência, mas violência da comunidade sobre o indivíduo que eventualmente se julga superior em força aos demais. Assim, cada indivíduo deve abrir mão de sua liberdade pessoal de utilizar a sua força para fins violentos. Porém, adverte Freud, um estado de equilíbrio dessa espécie só é concebível teoricamente.

Freud está de acordo com a proposta de Einstein quanto ao estabelecimento de um órgão legislativo e judiciário internacional para arbitrar os conflitos. Entretanto, e ecoando algo que nos diz respeito enquantohumanidade no presente, Freud afirma atualmente não existe ideia alguma que, espera-se, venha a exercer uma autoridade unificadora dessa espécie. Na realidade, é por demais evidente que os ideais nacionais, pelos quais as nações se regem nos dias de hoje, atuam em sentido oposto.

Quanto a hipótese lançada por Einstein acerca da existência no humano de uma tendência ao ódio e à destruição que coopera com os esforços dos mercadores da guerra", Freud responde estar de pleno acordo.  Acreditamos na existência de uma pulsão dessa natureza, e durante os últimos anos temo-nosocupado realmente em estudar suas manifestações.


De acordo com nossa hipótese, as pulsões humanas são de apenas dois tipos: aqueles que tendem a preservar e a unir  que denominamos eróticas, exatamente no mesmo sentido em que Platão usa a palavra Eros em seu Symposium, ou sexuais, com uma deliberada ampliação da concepção popular de sexualidade - ; e aqueles que tendem a destruir e matar, os quais agrupamos como agressividade ou destrutividade. (...) Nenhum dessas duas pulsões é menos essencial do que a outro; os fenômenos da vida surgem da ação confluente ou mutuamente contráriade ambas (Freud, 2005[1932], p. 38-39).


Enquanto as pulsões eróticas representam o esforço de vivera pulsão de morte, por outro lado, diz Freud, está em atividade em toda criatura viva e procura levá-la ao aniquilamento, reduzir a vida à condição original de matéria inanimada”. A pulsão de morte, acrescenta, torna-se pulsão destrutiva quando, com o auxílio de órgãos especiais, é dirigida para fora, para objetos. organismo preserva sua própria vida, por assim dizer, destruindo uma vida alheia.

A conclusão de Freud é pessimista e realista, mas contém em potência a semente do Amorde Erosassim dirige-se a Einstein: em todo caso, como o senhor mesmo observou, não há maneira de eliminar totalmente os impulsos agressivos do homem; pode-se tentar desviá-los num grau tal que não necessitem encontrar expressão na guerra. (...) Se o desejo de aderir à guerra é um efeito de uma pulsão destrutiva, a recomendação mais evidente será contrapor-lhe o seu antagonista, Eros.

A correspondência entre Freud e Einstein talvez possa ser lida como uma tentativa de intervenção num cenário que começava a sinalizar as catástrofes do por vir. Como é dito no prefácio da edição brasileira de Um diálogo entre Einstein e Freud: por que a guerra? (2005[1932])crise econômica que se abateu sobre o capitalismo após a quebra da Bolsa de Nova Iorque, em 1929, repercutiu politicamente na Europa. O poder de Mussolini, líder fascista, consolidou-se. Foi incendiado o Reichstag, na noite de 27 de fevereiro de 1933, conduzindo à prisão mais de 10 mil pessoas na Alemanha. Seguiu-se, em 5 de março, a eleição de Hitler. O nazismo deu início, então, à sinistra política que conduziria o mundo à barbárie.

Após os horrores da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto, o filósofo Adornodialogando diretamente com Freud das obras O mal-estar na civilização e Psicologia de massas e análise do euretoma uma questão, no mínimo assustadora, a barbárie encontra-se no próprio princípio civilizatórioe como ela já aconteceu tudo que resta é impedir que se repita, o que passa, segundo Adorno, pela educação, considerando, sem sombra de dúvidas, os saberes provindos da Psicanálise


A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. De tal modo ela precede quaisquer outras que creio não ser possível nem necessário justificá-la. Não consigo entender como até hoje mereceu tão pouca atenção. Justificá-la teria algo de monstruoso em vista de toda monstruosidade ocorrida. Mas a pouca consciência existente em relação a essa exigência e as questões que ela levanta provam que a monstruosidade não calou fundo nas pessoas, sintoma da persistência da possibilidade de que se repita no que depender do estado de consciência e de inconsciência das pessoas. Qualquer debate acerca de metas educacionais carece de significado e importância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita. Ela foi a barbárie contra a qual se dirige toda a educação. Fala-se da ameaça de uma regressão à barbárie. Mas não se trata de uma ameaça, pois Auschwitz foi aregressão; a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geram esta regressão. E isto que apavora. Apesar da não-visibilidade atual dos infortúnios, a pressão social continua se impondo. Ela impele as pessoas em direção ao que éindescritível e que, nos termos da história mundial, culminaria em Auschwitz. Dentre os conhecimentos proporcionados por Freud, efetivamente relacionados inclusive à cultura e à sociologia, um dos mais perspicazes parece-me ser aquele de que a civilização, por seu turno, origina e fortalece progressivamente o que é anticivilizatório. Justamente no que diz respeito a Auschwitz, os seus ensaios O mal-estar na civilização” e Psicologia de massas e análise do eumereceriam a mais ampla divulgação. Se a barbárie encontra-se no próprio princípio civilizatório, então pretender se opor a isso tem algo dedesesperador (Adorno, 2003 [1965], grifos nossos).


Não há, portanto, vítimas ou algozes definidos por princípioA questão não é apenas históricapolítica ou econômica, mas também psíquica. Todos, sem exceção, dependendo das pulsões predominantes, podem ser ora as vítimas ora os assassinos. Se a barbárie está contida no próprio princípio civilizatório, sepossui também profundas e múltiplas camadas psíquicas, tudo o que podemos desejar neste momento histórico, sem alguma desesperança, em que ela explode no real e em nossas telas de cristal líquidoé um Feliz Natal e um próspero ano novo em que o amor reine, embora os mortos, como escreveu Walter Benjamin,não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo, ele frisou, não tem cessado de vencerO Messias não vem apenas como salvador; ele vem também como o vencedor do Anticristo. Mas na era dos simulacros e das simulações, das fake news, do culto às armas da manipulação técnica do humano como saber quem é o verdadeiro Messias?

Para concluir, ou melhor, para (re-)abrir um novo tempo, lembremoscom Freud, novamentedo AmorA Psicanálise, ele diz, não tem motivo porque se envergonhar se fala de amor, pois a própria religião emprega as mesmas palavras: Ama a teu próximo como a ti mesmo. Isto, todavia, é mais facilmentedito do que praticado.

Elenice Milani


IMAGEM: 

Registro da partida amistosa disputada durante “Trégua de Natal” da 1ª Guerra Mundial.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

ADORNO, TW. “Educação após Auschwitz” [1965]. In: Educação e. Emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 2003

EINSTEIN, A. FREUD, S. Um diálogo entre Einstein e Freud: por que a guerra? apresentação de Deisy de Freitas Lima Ventura, Ricardo Antônio Silva Seitenfus. Santa Maria: FADISMA, 2005.

FREUD, S. O mal-estar na civilização. Novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos.  (1930-1936). Trad.  Paulo César de Souza. são Paulo. Companhia das Letras, 2010.



Conheça o meu canal:


  A guerra da s interpretações  e o fu tu ro d o humano: uma mens agem natalina  a partir d a corre spond ência entre Einstein e Freud.

0 comments: