A “prática dos nós”: um apêndice sobre o estudo do Sinthome
26 de abril de 2024, por Elenice Milani
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James Joyce e Jacques Lacan |
Neste texto retomaremos, brevemente, o tema do Sinthome lacaniano que estudamos no quarto bimestre de 2023. Para tanto, acompanharemos as considerações de Pura Cancina no texto “Do sintoma ao Sinthome”.
Cancina afirma que os nós ensinam a Lacan uma “prática dos nós”, o que, segundo ela, remete tanto a Joyce, como ao filósofo italiano Giambattista Vico (1668-1744) para quem a verdade se alcança com o fazer. “Fazendo o nó, praticando o nó, Lacan chega a descobrir a importância da função de nominação”.
Tomando a conferência “Joyce, o sinthome” como referência, Cancina diz que Lacan, ao usar Joyce Le Sinthome como nome próprio, está dizendo que a obra de Joyce lhe constrói um nome próprio e que o escritor, a partir de sua obra, já não é James Joyce filho de John Joyce, mas sim James Joyce filho da obra e dos pais que inventa para essa obra.
Lacan, ela acrescenta, certa vez disse em homenagem a Marguerite Duras que o artista se adianta a nós e nos ensina o que nós psicanalistas, todavia, não sabemos. Joyce ensinou à psicanálise função do Sinthome através de uma obra de uma beleza que canta e encanta.
É muito impressionante, porque, sobretudo em “Finnegans Wake”, os eruditos em Joyce mesmo, aconselham ler em voz alta, porque lendo em voz alta pode-se escutar o jogo homofônico e a mistura de línguas, e Joyce lendo, canta. Todos sabem que Joyce, se não fosse escritor, gostaria de ter sido cantor, e que tinha uma excelente voz. E quem sabe, a voz e a música foram as únicas coisas que recebeu de herança de seu pai. Porém, de todos os modos, esse pai não alcançava para manter esse nó.
Se atendo ao “sin” de Sinthome, Cancina lembra do “sin”, pecado em inglês, sobre o qual Lacan dirá coisas importantes como: que o pecado remete à falta, ou seja, o pecado é a consciência da falta, o que, salienta Cancina, “nos remete à primeira falta, a falta ocasionada por Eva, a primeira mulher, a única. "Lacan está falando "A Mulher" não existe. A primeira, a única é que produz a falta. Portanto, brevemente a partir daí vai formular que "não existe relação sexual". Porque não existe a classe das mulheres. "A Mulher" com maiúscula não existe. Existem as mulheres. Então, “sin”, pecado, falta, falha, primeira falta a partir da mulher que não existe, portanto é imortal, ele vai dizer, porque não cessa de não se inscrever”.
Por outro, temos o que não cessa de escrever, ou seja, a falha e o sintoma. “O sintoma respondendo pela falha, o sintoma respondendo pelo que falta”, o que aproxima as noções de Sinthome e reparação. “O sinthome como reparação, explica Cancina, pode ser compreendido tanto como reparação do nó falhado, mas também como reparação do sintoma.
Sinthome é uma palavra valise. Ela contém o “sin” (pecado em inglês), mas também, já em francês, algo como o "sin t home", onde lemos santo homem, ou ainda retornando ao inglês, santo lugar, santa casa. “O sin t home, como santo homem vem no lugar de pecado. Ou seja, ali onde estava o pecado, a falta, vem o “sin t home” reparar algo, que não é precisamente a santidade, mas algo que remete à resposta ao pecado. Mas também podemos ler santa casa - e isso é uma referência direta à Irlanda de Joyce”. Podemos ir mais longe com a palavra valise Sinthome, ou seja, até São Thomás de Aquino de quem Joyce se guiava pela teoria da beleza e da criação a partir dos conceitos de integritas, consonâncias e claritas.
Cancina retoma a questão inicial da “prática do nó” e da “nominação” e lembra que o nome-do-pai é simbólico porque é uma metáfora, “portanto é um jogo significante que assegura que a boca do crocodilo não vai se fechar”. A boca do crocodilo, rememoremos, é o desejo da mãe, segundo postulou Lacan no “Seminário 17”.
A nominação e a metáfora paterna são da ordem do simbólico, prossegue Cancina, mas no caso da nominação trata-se do real do simbólico. Enquanto o nome do pai é metáfora, a nominação é letra. “Para a nominação Lacan propõe outro modo de pai, o pai que nomeia”.
Joyce era invadido por falas impostas ou se deixava invadir para "fazer com"? Cancina, recorrendo a Lacan e à Giambattista Vico, dirá que a verdade se encontra fazendo. Joyce escolheu por onde tomar a verdade e soube usar disso logicamente até alcançar o segredo da linguagem, isto é, ele soube "fazer com" a linguagem, com a falha da linguagem.
Nossa prática, ela conclui, pode ser como Lacan pensava nos últimos tempos de seu ensino, como uma prática de corte e costura. "Corte e reanodamento”, pois "são reanodamentos na análise que podem esgotar a função metafórica e metonímica do significante para chegar a algo em que o sintoma não tenha mais ser, não faça mais falta". Num estado portanto em que não há nada para interpretar, porque se conseguiu "saber fazer com", porque se alcançou, portanto, o "sinthome"... "Isso quer dizer que, de alguma maneira se chega a uma solução não insana, senão satisfatória, viável de gozo. De um gozo viável, possível e não sofrente". Com um saber fazer aí com.
Referências bibliográficas
CANCINA, Pura H. “Do sintoma ao Sinthome”. S/d.
LACAN, J. J. O Seminário. Livro 23. O Sinthoma [1975-1976]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
LACAN, J. J. “Joyce, o sintoma”: In: _____. Outros escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003. p. 560-566.
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