Lacan, um sofista

Luan

16 de Maio de 2024,  por Elenice Miliani

The Death of Socrates (1787) por Jacques-Louis David

        Sócrates é um sofista ou um caçador de sofistas?  Essa certamente é uma questão filosófica em aberto, como toda boa questão filosófica.  Dentre os que a pensaram está Lacan, mas não para decidir se é ou não Sócrates um sofista, mas talvez para lançar uma bela provocação, qual seja: a de que todos, filósofos e/ou psicanalistas, somos sofistas. 

Porém, não sofistas como aqueles que Sócrates (ele mesmo um sofista?) dizia serem sofistas, inimigos da verdade ou que cobravam por seu ensino, como uma certa história da filosofia nos legou. Mas sofistas lidos e pensados em outra chave.

Mas suspendamos brevemente o juízo, e coloquemos tudo isso como hipótese a ser verificada. Quando Lacan no “Seminário 12” diz que o psicanalista é a presença do sofista em nossa época que compreensão dos sofistas ele tem? Tal questão, para o que nos interessa aqui, é mais importante do que repetir “o psicanalista é a presença do sofista em nossa época”, afinal se desvendarmos algo desse sofista a que alude Lacan entenderemos o que é, ou ao menos algo do que possa ser, o psicanalista para Lacan.

O problema em questão, que tentamos circundar, não é, portanto, provar se Sócrates é ou não um sofista, o que só nos conduzirá a um debate tão antigo como a própria história da filosofia e a respostas, contraditórias, mas plausíveis porque justificáveis se não logicamente ao menos dentro do escopo dos debates internos da história da filosofia, do tipo “Sócrates é um sofista para X” ou “Sócrates é um verdadeiro filósofo e não é um sofista para Y”.

Mas tudo muda se compreendermos a sofística não mais em oposição simétrica a um pretenso e único pensamento filosófico, mas como um pensamento possível entre muitos outros.  A verdade, de fato é um objeto de desejo da filosofia, mas não o único, algo que, por exemplo, alguém como Nietzsche sabia muito bem.  “As verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são. metáforas que se tomaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas” (Nietzsche, 1991 (1873), p. 34)

A partir da compreensão positiva da sofística em sua singularidade, e não mais sob o desejo de poder e verdade da filosofia de Sócrates a aproximação de Lacan do psicanalista ao sofista ganha contornos e sentidos muito mais complexos e sinuosos.  

Não se trata, portanto, de dizer que o psicanalista como o sofista age a partir da cobrança de um valor, nem se trata de dizer que aquilo que o psicanalista diz ou faz é apenas retórico ou performático, posição essa que cairia como uma luva para uma certa ciência que, justamente talvez por uma compreensão equivocada da sofística, ataca a psicanálise como se esta encarnasse a sofística que Sócrates (o sofista, ou melhor, um sofista entre outros sofistas)  interpelava com suas perguntas curtas...

Enfim, se o psicanalista é um sofista que sofista ele é? Sim, sofista como Sócrates não admitia ser e sofista como os próprios sofistas. O desejo dos sofistas não cabe na pólis assim como o desejo de Sócrates, talvez por razões distintas, mas sempre ao redor do desejo. Estabelecida minimamente uma unidade entre diferentes formas sofísticas façamos a pergunta que vale a pena ser feita: o que é sofística pensada sem preconceitos histórico-filosóficos e em sua própria singularidade, e derivemos desta pergunta uma outra (ou a mesma que já fizemos no princípio)? Com qual conceito de sofística trabalha Lacan?

Evidentemente não pretendemos neste espaço dar uma resposta definitiva a tais perguntas o que exigiria uma extensa pesquisa que apenas ensaiamos para assim iniciarmos um diálogo, uma fala para outras falas. Portanto, o exercício de bordejar o problema em questão não oculta nenhuma pretensão de uma sabedoria ideal que para se estabelecer como paradigma na pólis parte de uma caça a alguém apontado, negativamente, como sofista, muito pelo contrário, encarar a problemática posta visa compreender o sofista Lacan, se assim podemos dizer, a partir de um outro entendimento da sofística que alguns textos da helenista Barbara Cassin já iluminam.

Neste sentido, justamente à luz de textos de Cassin, Dunker pergunta “como e por que Lacan é um sofista?” E responde: “ele é um sofista não porque é um enganador, mas porque teria sido um dos únicos a levar em conta e incorporar (...) o que teria sido uma teoria da linguagem criada e inventada pelos sofistas. (...) os sofistas são práticos da linguagem, (...) estão mais interessados nos efeitos sofísticos, do que propriamente na descrição de como funciona a linguagem, porque para fazer isso já teriam que acreditar que esse objeto é apreensível segundo uma certa teoria da verdade, apreensível segundo certos métodos, e é tudo isso o que os sofistas derrogam” (Dunker, 2015, transcrição nossa).

Atenção aos “efeitos da linguagem”, eis uma herança decisiva sobre a noção lacaniana de desejo, atestada aqui nas palavras do próprio Lacan. “A questão das relações entre o desejo e isso diante do que ele se fixa já nos conduziu a noção do desejo enquanto desejo de outra coisa. Chegamos até aí pelas vias da análise dos efeitos da linguagem sobre 0 sujeito” (Lacan, 1992 [1960-1961], p. 42).

No escopo do comentário que Lacan faz do Banquete, a transferência também será apontada como um “efeito”, “... efeito, tão estranho por seu automatismo, que se chama a transferência, impossível comparar a transferência e o amor, e medir a parte, a dose, do que se deve atribuir a cada um, e reciprocamente, de ilusão ou de verdade” (Idem).


Referências

Dunker, C. “Seminário sobre a obra de Lacan: O psicanalista é a presença do sofista em nossa época”. Instituto de Psicologia da USP, Youtube, 2015. Disponível em: << https://youtu.be/CCEAdyewJbA?si=84tia9deII6HYgv7 >>. Acesso em: 21 abr. 2024.

Jaeger, W. (1995). “Sócrates”. In Paideia: A formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes.

Lacan, J. (1990). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. (M. D. Magno, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Obra original publicada em 1964).

_______. (1992). O seminário, livro 8: a transferência. (M. D. Magno, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Obra original publicada em 1960-1961).

________. (2006 [1964-1965]). “Lição XVIII de 12 de maio de 1965”. In: O Seminário, livro 12: Os Problemas Cruciais da Psicanálise. Centro de Estudos Freudianos do Recife.

Nietzsche, F. (1991 [1873]. “Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral”. In: Nietzsche. Vol. 1. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1991. 

Platão (1991). ‘Diálogos: O banquete – Fédon – Sofista – Político”. Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural.



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