Do sofista ao psicanalista: a ética do sujeito suposto saber
21 de Junho de 2024 por Elenice Milani
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Jacques Lacan |
Para Lacan, ser psicanalista é uma posição que exige extrema responsabilidade. O psicanalista, ele afirma, é aquele a quem está confiada a operação de uma conversão ética radical, qual seja: a de introduzir o sujeito na ordem do desejo.
Esse desejo não é da ordem do consciente, mas do inconsciente, e o sujeito ao qual a psicanálise se refere não coincide com o “sujeito do saber”, mas é um outro, conceituado por Lacan como "o sujeito suposto saber".
Lacan, diríamos, ressoa algo que encontramos em Rimbaud que, em maio de 1871, em uma carta para seu professor Izambard, escreveu que o “Eu é um outro”, frase que que tem sido ostensivamente estudada não apenas no âmbito da teoria literária contemporânea, mas também no da filosofia e da própria psicanálise. Esta, porém, não será nossa questão principal neste texto; lembremos dela en passant, pois auxilia-nos a pensar no estatuto do “sujeito suposto saber” lacaniano.
Neste domínio, já não nos orientamos pelo signo que representa alguma coisa para alguém, mas pelo significante que representa um sujeito para um outro significante. A lógica clássica, que se apresenta sob o registro da presença do necessário e do suficiente, também vacila, pois o desejo, para Lacan, é da ordem da falta.
O psicanalista não é um sujeito do saber no sentido cartesiano do "eu penso, eu existo", mas "sujeito suposto saber". Ele é um sujeito introduzido por outro sujeito na ordem do desejo e habilitado a introduzir outrem nesta ordem, operando, como vimos acima, uma "conversão ética radical". O que ele tem para saber não é saber de classificação, não é saber geral, não é saber de zoologista. O que ele tem que saber se define por esse nível primordial onde há um sujeito que é levado, em nossa operação, a esse tempo de surgimento que se articula, “eu não sabia” (Lacan, 2006 [1965], p. 329).
Neste ponto, adentramos com Lacan o campo do sintoma, que se define como "alguma coisa que se assinala como um saber já ali, em um sujeito que sabe que isso lhe concerne, mas que não sabe o que é”.
Mas, questiona-nos Lacan, “em que medida podemos, nós analistas, dizer que estamos à altura dessa tarefa de ser aquele que, em cada caso, sabe o que é?" Ele próprio responde: "apenas nesse nível, já ali onde está colocada, se coloca a questão do estatuto do psicanalista" (Idem, p. 333).
Se há um saber ele é contingente, uma “articulação significante”, conforme sugere Lacan. Na necessidade mesma do saber “há essa contingência de não ser senão uma articulação significante, uma fechadura montada”.
Aos olhos do paciente, o psicanalista, este que sabe que não sabe, aparece como aquele que sabe o que o próprio paciente não sabe. "Para que a análise inicie e se sustente", diz Lacan, “seguramente o analista é suposto saber. E, entretanto, tudo o que comporta justamente de saber o fundamento da psicanálise afirma que não poderia ser, esse sujeito suposto saber, pela razão de que o saber fundamental da psicanálise - a descoberta de Freud - o exclui” (Lacan, 2006 [1965], p. 337). Eis Lacan diante de uma antinomia aberta no dia 5 de maio de 1965 e que será explorada no 12 de maio a fim de mostrar que, não obstante, a posição do analista aí efetivamente se sustenta.
No próximo texto, observaremos como Lacan lida com esta antinomia que habita o coração da prática psicanalítica, o que nos conduzirá à Grécia Antiga, mais precisamente à prática sofística, afinal o que eram os sofistas senão aqueles que aparentavam ter resposta a tudo, sujeitos de um suposto saber ...
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