LACAN, O SOFISTA E A ÉTICA DO DESEJO

Luan

por Elenice Milani | 05 de Julho de 2024


Estátua de Sócrates por Leonidas Drosis
            

        No texto anterior, baseado na “Lição 17” do dia 5 de maio de 1965, no âmbito do Seminário 12, enquanto investigávamos a presença da sofística grega no pensamento de Lacan, vimos que este ao abordar o "sujeito suposto saber" adentra uma antinomia. Afirma Lacan: “seguramente o analista é suposto saber. E, entretanto, tudo o que comporta justamente de saber o fundamento da psicanálise afirma que não poderia ser esse sujeito suposto saber, pela razão de que o saber fundamental da psicanálise - a descoberta de Freud - o exclui” (Lacan, 2006 [1965], p. 337).
Esta antinomia será explorada por Lacan na lição seguinte, proferida no dia 12 de maio. Ele mostrará que, não obstante, a posição do analista aí efetivamente se sustenta.
        A esta altura, o leitor poderá estar se perguntando: “e a questão sofística que era o tema principal desta série de textos”. Adiantemos a resposta antes de, a seguir, demonstrarmos o caminho percorrido até ela. Neste dia Lacan proferirá a famosa frase: "o psicanalista é a presença do sofista em nossa época". Portanto, neste momento, nossa questão sobre a presença da sofística no pensamento lacaniano se conecta à questão propriamente lacaniana do analista como "sujeito suposto saber". Tal qual foi o sofista em sua época o psicanalista é, na perspectiva do outro, ou melhor, do paciente, o detentor de um suposto saber.
        Inicialmente, Lacan retoma a expressão "a palavra me falta" para demonstrar que, a partir de Freud, ela adquire um novo estatuto, ou seja, a expressão não tem a ver com o esquecimento da palavra como significação, a qual subsiste muito frequentemente, mas da falta de uma articulação de significância. E, conforme Lacan, é justamente nessa falta de significante, "no nível da criação significante que se introduz alguma coisa que abre o caminho do que se pode apreender mais tarde" (Lacan, 2006 [1965], p. 338).
        O homem, em seus "exercícios significantes", sempre procurou o sujeito supremo, mas jamais o encontrou. É, pois, na ambiguidade da relação de um sujeito com o saber, isto é, é na situação em que o sujeito falta ao saber que está, para a psicanálise, "o nervo, a atividade da existência de um sujeito". Podemos então dizer que não há um sujeito do saber à priori, pelo contrário, o sujeito se funda na medida em que em algum lugar há uma falta, isto é, como ensina Lacan, em que há "falta de um significante".
        A partir deste pano de fundo podemos pensar que Freud descobre, juntamente com o inconsciente, o sujeito do inconsciente. O sujeito do inconsciente, acrescenta Lacan, não existia antes de sua descoberta, ele passa a existir a partir da instauração de uma nova relação com um "não-saber".       

O que quer dizer o inconsciente é que o sujeito recusa um certo ponto de saber, é que o sujeito se designa deliberadamente o não saber, é que o sujeito se institui - esse é o avanço em que a articulação freudiana se enriquece através de que designo à margem concernente à relação do sujeito com o significante - é que o sujeito se institui por um significante rejeitado, ver wofen, por um significante do qual não se quer saber nada" (Lacan, 2006 [1965], p. 342).

        Aristóteles utilizava a palavra "hypokeimenon" para definir "algo que subsiste". Ora, o sujeito do inconsciente, conforme formulado por Lacan a partir de Freud, subsiste mesmo na situação de um "não-saber". Nas palavras do próprio Lacan: "o que Freud designa para nós é a substância do sujeito de um não-saber". Diante disso, para Lacan, a questão que se coloca é como elaborar um estatuto tal desse sujeito sem dar-lhe um estatuto divino, sem fazê-lo pensar que ele é Deus.
        Neste momento Lacan recorre ao “O Sofista” de Platão e diz que este texto introduz uma importante noção de Outro. “Tudo está no estatuto desse outro. Tudo o que eu direi desse outro no que vai seguir está já articulado perfeitamente ao termo deste Sofista, e precisamente sob a rubrica do Outro” (Lacan, 2006 [1965], p. 342).
        Platão, explica Lacan, necessita da introdução do Outro como tal para refutar o sofista que consegue mostrar que “ser e não-ser não são contrários igualmente sendo-o”. Platão precisa que o não-ser seja instituído como Outro para que o sofista possa ser refutado.
        Assim como o sofista, o psicanalista, parece apontar Lacan, consegue lidar com o outro sem para isso ter que submeter este outro ao um, ao modelo. Eis uma possível razão da famosa afirmação que virá na sequência. "O psicanalista é a presença do sofista em nossa época, mas com um estatuto outro". Poeticamente, como suscita o próprio Lacan, ao invés de contrapor a noite ao dia ou o dia à noite, podemos escrever "a cada noite seu dia". Trata-se de pensar mais em oposições significantes, como nos parece sugerir o “aforismo fundamental do significante representando o sujeito para um outro significante”, do que simplesmente em contrários em que o outro é submetido ao um, perdendo sua singularidade.
        A outra interpretação para a enigmática afirmação de que "o psicanalista é a presença do sofista em nossa época, mas com um estatuto outro" já aludimos no início, ou seja, o psicanalista é percebido pelo paciente como aquele que sabe ou poderia saber algo que o próprio paciente não sabe. Porém, ainda que o psicanalista passe essa impressão de responder pelo significante singular do outro, na verdade é este outro que deve tornar-se sujeito do saber de seu próprio inconsciente. O que a psicanálise faz é criar as condições para que isso ocorra. Se o paciente se tornar sujeito do seu próprio inconsciente daí sim o psicanalista terá um saber sobre este outro sujeito que veio à tona. A princípio o psicanalista sempre “falta em sua relação com o outro significante”
        Atentemo-nos, quando Lacan fala do sujeito ele não se refere ao sujeito do conhecimento que a filosofia moderna nos legou e que a psicanálise herdou. Com Lacan, "o sujeito do qual se trata não é senão o sujeito em relação com o significante faltante". E este, significante faltante, como vimos jamais poderá ser suprido pelo psicanalista, “sujeito suposto saber”, que "falta em sua relação com o outro significante".
        Por fim, ainda poderíamos fornecer uma terceira, e complementar, interpretação da afirmação: "o psicanalista é a presença do sofista em nossa época, mas com um estatuto outro". No "Sofista" de Platão vemos surgir a categoria do "outro" e esse aparecimento marcará para sempre o pensamento ocidental, inclusive, como tentamos explicitar neste texto, o pensamento psicanalítico, que surge como um outro da metafísica ...
        Retornemos, para concluir, ao nosso ponto de partida. Ainda que o psicanalista em nosso tempo e, respeitada as diferenças, o sofista na antiguidade grega, não saibam aquilo que, na verdade, o outro lhe atribui saber, eles, que também são um outro para este outro aos olhos de quem são também outro, despertam uma prática de linguagem, um jeito de pensar a diferença sem contrariedade, sem anulá-la. Encontramos assim no coração da sofística e, por extensão, da psicanálise, uma ética do desejo em que, potencialmente, o desejo do outro é compreendido como um desejo outro e o nosso desejo não apenas como um desejo que deseja o desejo do outro, mas como um desejo outro de nosso próprio desejo que se equivoca.
        Levando em conta o que Lacan proferiu ao longo da “Lição 18” do dia 12 de maio de 1965 do “Seminário 12”, que estudamos neste texto, e tomando o masculino e o feminino como exemplo, podemos dizer que o masculino e o feminino não podem ser simplesmente definidos por contrariedade, mas, pensados contingentemente, no jogo das oposições significantes, no qual o sujeito do inconsciente emerge. Masculino e feminino, para a psicanálise, não são portanto, objeto de uma noção comum de saber legada pela teoria do conhecimento. "O masculino e o feminino, nós não sabemos o que é. E Freud o reconhece" (Lacan, 2006 [1965], p. 342).

REFERÊNCIA

Lacan, J.  (2006). O seminário, livro 12: problemas cruciais para a psicanálise. Pernambuco: Centro de Estudos Freudianos do Recife. (Seminário original de 1964-1965).



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