Lacan no Banquete de Platão
por Elenice Milani | 20 de Agosto de 2024
Plato's Symposium por Anselm Feuerbach (1869)
No texto de abertura da série “Desejo, amor e gozo” (iniciada com o texto “O segredo de Sócrates” já publicado em nosso site) fomos apresentados por Lacan a sugestivas aproximações entre psicanálise e filosofia.
Ali fomos tentados a formular uma pergunta: se a filosofia é o amor pelo saber seria a psicanálise o saber do amor? Se sim, então quando o filósofo Sócrates, um amante do saber, pergunta-se sobre o amor adentra pela primeira vez na história no campo da psicanálise que, como evidentemente sabemos, seria apenas desbravado e nomeado muitos séculos depois.
Para Lacan, o saber psicanalítico do amor funda-se justamente na metafísica ocidental. Não por acaso portanto, a primeira parte do “Seminário 8”, dedicado à transferência, faz um longo e detalhado comentário de “ O Banquete” de Platão. Lacan dedicará 10 capítulos à obra não tanto, segundo ele, para elucidar a questão da natureza do amor, mas sim para esclarecer a relação do amor com a transferência.
Em linhas gerais, explica Lacan, “O Banquete” é uma cerimônia com regras, um rito, um concurso íntimo entre pessoas da elite grega, que revela hábitos, costumes e níveis culturais. Cada participante deve fazer um discurso sobre o amor.
“O Banquete” será lido por Lacan como “uma espécie de relato de sessões psicanalíticas” (Lacan, 1992 [1960], p. 34), atentando-se especialmente à presença de Alcebíades. “E cabe a nós compreender o sentido que há em seu discurso”, solicita Lacan aos seus ouvintes.
O amor grego é o amor dos belos rapazes, o que não se trata, de modo algum, segundo Lacan, de uma dissolução do laço social, mas de outra coisa: “é um fato da cultura, e é também no meio dos mestres da Grécia, no meio de pessoas de uma certa classe no nível onde reina e se elabora a cultura, que esse amor é posto em prática. Esse amor é, evidentemente, o grande centro de elaboração das relações inter-humanas” (Lacan, 1992 [1960], p. 38).
Lacan então relembra o esquema da perversão com a cultura. Ele explica que a neurose favorece a criação cultural, enquanto a perversão, produto da cultura, opera em sentido oposto, “de elaboração, de construção, de sublimação”. “E o círculo se fecha, a perversão trazendo os elementos que trabalham a sociedade, a neurose favorecendo a criação de novos elementos de cultura”, o que, segundo o próprio Lacan, não impede que o amor grego permaneça uma perversão, por maior sublimação que seja.
Antes de prosseguir, Lacan diz que este amor da escola pode servir como uma escola de amor, mas isso, adverte, não significa que defenda um retorno ao amor platônico, pois “no ponto em que estamos (....) o amor está desengrenado da beleza”. E, para Lacan, é justamente a beleza, e sua função trágica, que dá o verdadeiro sentido ao que Platão dirá sobre o amor.
Na contemporaneidade, segundo Lacan, se quisermos apreender algo sobre o amor é à ficção que devemos recorrer, mais precisamente à ficção cinematográfica. "É o nível do que se apresenta como a materialização mais viva da ficção como essencial. Entre nós, é o cinema". Platão, acredita Lacan, ficaria satisfeito com essa invenção.
Não há melhor ilustração nas artes daquilo que Platão coloca na origem de sua visão de mundo. oque se exprime no mito da caverna, nós o vemos todos os dias, ilustrado por esses raios dançantes que vêm, sobre a tela, manifestar todos os nossos sentimentos em estado de sombras. E é realmente a esta dimensão que, na arte de nossos dias, pertencem, de modo mais eminente, a defesa e a ilustração do amor (Lacan, 1992 [1960], p. 41).
Antes de encerrar esse momento da longa abordagem do texto platônico que realizará no Seminário 8, Lacan faz duas afirmações prometendo retomá-las mais a frente: a primeira: "o amor é um sentimento cômico", a segunda: “o amor é dar o que não se tem”.
Referências bibliográficas
PLATÃO. Diálogos: Mênon, Banquete, Fedro. 5ª ed., trad. Jorge Paleikat, Rio de Janeiro, Porto Alegre, São Paulo: Editora Globo, 1962.
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