O amante e o amado
por Elenice Milani | 20 de Setembro de 2024
No texto anterior ("Lacan no Banquete de Platão), comentamos a abordagem do "amor grego" feita por Lacan nos momentos iniciais do Seminário 8, a partir da obra "O Banquete" de Platão.
Continuamos a acompanhar a leitura lacaniana de "O Banquete", desta vez nos atendo à questão do “amante” e do “amado”, o érastes e o érôménos.
Este conjunto de textos com a abordagem lacaniana da obra platônica fazem parte de uma pesquisa que estamos desenvolvendo em torno das noções de desejo, amor e gozo.
Muito embora, na antiguidade a experiência analítica, evidentemente, não exista, e o inconsciente seja uma dimensão totalmente desconhecida, Lacan afirma que em "O Banquete" podemos ver aparecer claramente "o amante como o sujeito do desejo - com todo o peso que tem para nós este termo, o desejo - e o amado como aquele que, nesse par, é o único a ter alguma coisa" (Lacan, 1992 [1960], p. 42). Daí, observa Lacan, a questão de saber se aquilo que o “amado” possui tem relação, “mesmo uma relação qualquer”, com aquilo que ao amante, 0 sujeito do desejo, falta.
O érastes, o amante, é aquele a quem falta algo, mas não sabe o que é, enquanto, o éromenos, o amado, é aquele que não sabe o que tem. A ambos, portanto, falta um saber. Porém, entre esses dois termos que constituem, em sua essência, o amante e o amado, não há nenhuma coincidência. “O que falta ao amante não é o que existe, escondido, no amado. No fenômeno, encontra-se a cada passo o dilaceramento, a discordância" (Lacan, 1992 [1960], p. 46).
Lacan lembra que, por séculos, todas as reflexões sobre o amor, feitas por padres ou por libertinos, se referiram a esse “texto inaugural”. Mas diferentemente de uma linhagem interpretativa que se estabeleceu ao longo do tempo, ele considera que a questão de “O Banquete” não é simplesmente dizer o que é o amor, mas sim de nos mostrar que está dificuldade indica, na verdade, a impossibilidade de dizer alguma coisa sobre o amor que se sustente.
Para Lacan, desejo é "desejo de outra coisa". A partir dessa noção, ele vê na dialética socrática do amor a possibilidade de pensar a articulação do desejo com o amor, e captar o momento de virada, "da conjunção do desejo com seu objeto enquanto inadequado", de onde deve surgir essa “significação que se chama o amor”.
Aprender essa articulação entre desejo e amor e também suas implicações no simbólico, no imaginário e no real, é fundamental para começar a compreender a transferência. A partir desse pano de fundo, e antes de prosseguir, Lacan pergunta “qual a nossa relação com o ser do paciente? Sabe-se bem, que é disso que se trata em análise. Nosso acesso a esse ser, será ou não o do amor?”
A transferência, segundo Lacan, é onde se manifesta o problema da relação analisado-analista. Portanto, é para melhor determinar essa relação, que Lacan, no Seminário 8, pensará o amor, que “o fenômeno da transferência é considerado imitar ao máximo, até mesmo chegando a confundir-se com ele” (Lacan, 1992 [1960], p. 45).
Antes de concluir suas reflexões sobre o amante e o amante, Lacan conduz-nos a pensar na diferença entre o objeto de nosso amor enquanto recoberto pelas nossas fantasias e o ser do outro. O outro, o amado, é apreendido em si mesmo pelo amante, ou através da fantasia?
Referências bibliográficas
LACAN, Jacques. O seminário, livro 8: a transferência 1960-1961. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; versão brasileira de Dulce Duque Estrada; revisão Romildo do Rego Barros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.PLATÃO. Diálogos: Mênon, Banquete, Fedro. 5ª ed., trad. Jorge Paleikat, Rio de Janeiro, Porto Alegre, São Paulo: Editora Globo, 1962.
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