O segredo de Sócrates

Luan

por Elenice Milani | 04 de Agosto de 2024


Raffaello Sanzio | The School of Athens 

        “No começo era o amor” é o título da introdução do Seminário 8 sobre a transferência ministrado por Lacan em 1960 e 1961. Mas no começo do que exatamente era o amor para Lacan? “No começo da experiência analítica”, ele responde. A partir desse “começo espesso, confuso”, abordaremos em uma série de textos o amor, o desejo e o gozo.
        Ainda na introdução do Seminário 8, Lacan lembra que Sócrates foi aquele que nada pretendia saber, a não ser, “reconhecer o que é o amor”. Neste ponto, podemos entrever a estratégia de Lacan para abordar o amor. Ele recorre ao início da metafísica ocidental e observa aí o começo da “experiência analítica”. "São múltiplos os casos dessa referência de Sócrates ao amor, e nos reconduzem ao nosso ponto de partida" (Lacan, 1992 [1960], p. 15).
        Lacan, a partir do testemunho de Platão, dirá que justamente aquele que nada pretendia saber desejava, em segredo, saber o que é o amor. “O segredo de Sócrates estará por trás de tudo o que diremos este ano sobre a transferência. Este segredo, Sócrates o confessou. Mas não é porque se o confessa que um segredo deixa de ser um segredo. Sócrates pretende nada saber, senão saber reconhecer o que é o amor, saber reconhecer infalivelmente”. Nas próprias palavras de Sócrates, testemunhadas por Platão no Lísis. "Eu sou um homem ordinário e inútil em tudo o mais, mas isto, de algum modo, foi-me dado pelo deus: ser capaz de reconhecer, instantaneamente, quem ama e quem é amado" (Platão, Lísis, 204 b – 204 c).
        Seguindo as ideias lançadas por Lacan sobre o caso Sócrates, podemos arriscar a dizer que estamos diante não apenas do momento inaugural da metafísica ocidental, mas da própria psicanálise, evidentemente não nomeada, ou, ao menos, diante de uma “história de amor” e da primeira experiência de cura pela palavra.
        A seguir, Lacan faz um paralelo de Sócrates com Freud. Este, segundo Lacan, escolhe Eros para servi-lo e para servir-se dele. Mas servir-se dele para quê? A resposta de Lacan para a questão é longa, mas decisiva para a compreensão de seu pensamento sobre a questão da transferência e a relação desta com Eros.
        Lacan responderá que em Freud já não se trata de servir-se de Eros visando o Supremo Bem, em sentido platônico, pois, conforme os saberes próprios do campo psicanálise, o domínio de Eros é mais extenso que qualquer campo coberto pelo Bem. É desta premissa que Lacan partirá no Seminário 8 para abordar a transferência, afirmando a seguir um aspecto decisivo de seu pensamento sobre o tema. “Essa, aliás, é uma coisa perpetuamente presente em meu espírito (...) a respeito da transferência (...) não se deve de nenhuma maneira, nem preconcebida, nem permanente, colocar como primeiro termo do fim se usa ação o bem, pretenso ou não, de seu paciente, mas precisamente o seu eros” (Lacan, 1992 [1960], p. 15).
        Lacan encerra a introdução do Seminário 8 apontando para a necessidade de desenvolvimento de uma abordagem psicanalítica do amor à altura de uma longa tradição que tratou amor e da qual a psicanálise se serviu. Lacan, como já entrevíamos, anuncia que partirá de "O Banquete" de Platão, texto, segundo ele, de interesse monumental, original com referência a toda tradição que é a nossa, no que diz respeito à estrutura do amor. "Vou mostrar-lhes o que podemos encontrar aí, o que podemos deduzir daí, como marcos essenciais, até na história deste debate sobre o que realmente ocorreu na primeira transferência analítica".
        No próximo texto de nossa série “desejo, amor, gozo” perscrutaremos a leitura e os comentários de Lacan do texto “O Banquete” desvelando, quem sabe, segredos socráticos.


REFERÊNCIA

LACAN, Jacques. O seminário, livro 8: a transferência 1960-1961. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; versão brasileira de Dulce Duque Estrada; revisão Romildo do Rego Barros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

PLATÃO. Diálogos: Mênon, Banquete, Fedro. 5ª ed., trad. Jorge Paleikat, Rio de Janeiro, Porto Alegre, São Paulo: Editora Globo, 1962.

______ Lísis. Introdução versão e notas de Francisco de Oliveira. Brasília: UNB, 1995.



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