Melancolia: A Catástrofe Psíquica e o Superego Punitivo
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Cena do filme "Melancolia" dirigido por Lars Von Trier, lançado em 2011 |
O filme Melancolia (2011), de Lars von Trier, não trata apenas do fim do mundo, mas do colapso interno de uma subjetividade. Justine, a protagonista, não teme a destruição iminente; ao contrário, parece encontrá-la como um desfecho esperado. Seu olhar vazio, sua apatia e sua recusa em lutar pela sobrevivência revelam um estado psíquico que Freud descreveu em Luto e Melancolia (1915): uma identificação destrutiva com o objeto perdido e a ação cruel do superego.
Melancolia e o Superego Destrutivo
No filme, Justine se apresenta exatamente dessa forma. Sua tristeza não é apenas um estado emocional, mas um processo de autodestruição. Ela se afasta dos outros, recusa cuidados, se sabota profissionalmente e se entrega a uma apatia profunda. Freud aponta que essa dinâmica está ligada à ação do superego, que se torna excessivamente punitivo. Enquanto no luto há um sofrimento direcionado à perda, na melancolia o superego acusa o próprio sujeito, repetindo frases de autodesvalorização como um juiz implacável.
O comportamento de Justine ilustra essa lógica: sua autopercepção é marcada por desprezo e culpa. Ela se sente inadequada, sem valor e incapaz de se conectar com o mundo. Seu superego não permite trégua—ele a destrói lentamente.
O Gozo na Melancolia e o Prazer na Dor
Esse aspecto se relaciona com o conceito de pulsão de morte em Freud (Além do Princípio do Prazer, 1920). A pulsão de morte é um impulso que nos leva à repetição, à autodestruição e, em última instância, à dissolução do próprio eu. Justine, ao invés de resistir ao fim, se entrega a ele, como se finalmente estivesse encontrando um destino que já carregava dentro de si.
Claire e a Neurose: O Medo do Fim
Aqui, Freud nos ajuda a entender a diferença entre a neurose e a melancolia. Enquanto o neurótico se angustia tentando controlar o que não pode ser controlado, o melancólico se entrega passivamente ao destino, muitas vezes antecipando sua própria ruína. Claire tenta proteger sua família, busca soluções e luta contra o inevitável, enquanto Justine apenas observa, com um olhar vazio, o desenrolar da tragédia.
O Que a Melancolia Nos Ensina?
Por outro lado, a neurose de Claire mostra o desespero de quem tenta negar o incontrolável. Freud e Lacan nos ensinam que nem a entrega total ao desespero, nem a tentativa de controle absoluto são caminhos saudáveis. A psicanálise nos convida a refletir: como lidamos com a perda? Como nosso superego nos julga? A melancolia nos faz ver certas verdades, mas é preciso encontrar uma forma de seguir vivendo apesar delas.
A melancolia, de fato, é uma das formas mais intensas de sofrimento psíquico, descrita por Freud como uma situação em que o superego, alimentado pela pulsão de morte, assume uma posição extremamente punitiva e violenta contra o ego.
Na melancolia, o superego transforma o ódio direcionado ao objeto perdido em uma autocensura cruel, voltando-se contra o ego com um rigor insuportável. Isso gera sentimentos de desvalorização, culpa extrema e, muitas vezes, o desejo de autodestruição, que pode se manifestar através de pensamentos suicidas ou comportamentos autodestrutivos.
Freud e outros psicanalistas destacam que a pulsão de morte é uma força interna que busca a dissolução e o fim, enquanto Eros, a pulsão de vida, trabalha para unir, preservar e criar. Para que a pulsão de morte não se manifeste de forma destrutiva, é necessário que ela seja atenuada pela energia libidinal de Eros. Essa integração pode ser alcançada por meio de vínculos afetivos, criatividade, trocas sociais e o cultivo de experiências que promovam a vida.
abril 04, 2025
Cena do filme "Melancolia" dirigido por Lars Von Trier, lançado em 2011 por Elenice Milani | 04 de Abril de 2025 O filme ...
Camille Claudel: Arte, Paixão e Devastação
por Elenice Milani | 21 de Fevereiro de 2025
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Cena do filme "Camille Claudel" de 1988, dirigido por Bruno Nuytten |
Camille foi uma mulher à frente de seu tempo, mas também tragada por um amor devastador. Na psicanálise, podemos pensar em duas formas de gozo que atravessam sua história: o gozo erotomaníaco, em que o outro se torna um suporte absoluto do amor, e o gozo da devastação, marcado por uma dor sem limites, que tudo consome.
Além disso, Camille tinha uma relação singular com o barro. Moldar a matéria não era apenas um gesto artístico, mas uma necessidade psíquica, quase uma tentativa de reconstrução de si mesma. Na época, essa compulsão foi chamada de “a doença do barro”, um traço da estrutura psicótica que a habitava. Sua escultura era mais do que arte, era um modo de existir.
Se sua vida foi marcada pelo desmedido e pelo abandono, sua obra sobreviveu. O barro que ela moldava resistiu ao tempo e rompeu o silêncio imposto a ela.
Na psicanálise, buscamos manter viva a interrogação sobre esse enigma: até onde a paixão pode nos levar? O que acontece quando o desejo de moldar o mundo é a única forma de sustentar a própria existência?
Qual dessas versões da história de Camille você já viu? O que sua arte desperta em você?
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Cena do filme "Camille Claudel 1915" de 2013, dirigido por Bruno Dumont |
fevereiro 21, 2025
por Elenice Milani | 21 de Fevereiro de 2025 Cena do filme "Camille Claudel" de 1988, dirigido por Bruno Nuytten Duas v...
O Desejo Insaciável de Emma Bovary
por Elenice Milani | 27 de Janeiro de 2025
Emma Bovary, protagonista da obra de Gustave Flaubert, é um dos retratos mais complexos do desejo humano na literatura. A partir de uma perspectiva psicanalítica, sua história revela a angústia e a insatisfação que marcam a busca incessante por preencher a falta constitutiva do sujeito.
No século XIX, período em que a obra é ambientada, a histeria foi central para o desenvolvimento da Psicanálise por Freud. Emma é uma personagem que encarna a histeria feminina, marcada pela oscilação entre o desejo e a impossibilidade de sua realização plena. Sua fragilidade identificatória surge desde jovem, quando não encontra lugar nem no convento nem na vida doméstica.
Segundo Freud, a histérica reconhece a castração, mas tenta compensá-la, buscando respostas para a questão: "O que é ser mulher?". Emma projeta nos homens a esperança de encontrar essa resposta, mas cada relação a conduz à frustração, pois nenhum deles é capaz de preencher sua falta.
Emma é movida por um desejo insaciável de "ser outra". Busca transcendência no amor romântico, no adultério e no consumo, mas sempre se depara com a realidade de que o desejo é, por essência, insatisfeito. Sua relação com o consumo e os romances que lê reforçam uma fantasia de completude que nunca se concretiza.
Jacques Lacan destaca que o desejo humano é sempre desejo do Outro, e Emma exemplifica essa lógica ao delegar seu desejo ao olhar alheio, buscando ser o objeto de desejo de homens que, na verdade, não podem responder às suas expectativas.
A morte de Emma é simbólica e inevitável. Incapaz de lidar com as consequências de suas escolhas e as dívidas acumuladas, ela recorre ao arsênico como uma tentativa desesperada de retomar o controle. No entanto, o sofrimento físico do envenenamento a confronta com a realidade de sua condição humana, evidenciando a distância entre sua fantasia e o real.
Segundo a psicanalista Aulagnier, a morte oferece ao sujeito o que ele não sabia demandar: o fim do sofrimento e da insatisfação. Para Emma, a morte é sua última tentativa de realização do desejo, mas pela via do não-desejo.
Além de ser um estudo profundo do desejo e da subjetividade, Madame Bovary é uma crítica ao senso comum burguês do século XIX. Emma representa uma mulher que desafia as normas sociais, mas paga um preço alto por sua transgressão. Sua tragédia pessoal não altera a rotina provinciana de Yonville, reforçando a crítica de Flaubert à mediocridade da vida burguesa.
Apesar de ambientada em outro século, a obra permanece atual ao explorar temas como o consumo, a busca por identidade e a insatisfação estrutural do desejo humano. Emma Bovary continua a ser um retrato trágico e fascinante da condição humana, desafiando leitores e estudiosos a refletirem sobre os limites entre o ideal e a realidade, entre o desejo e sua impossibilidade. janeiro 27, 2025
por Elenice Milani | 27 de Janeiro de 2025 Emma Bovary, protagonista da obra de Gustave Flaubert, é um dos retratos mais complex...
Blue Jasmine (2013)
por Elenice Milani | 07 de Janeiro de 2025
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Cate Blanchett no filme "Blue Jasmine" (2013), dirigido por Woody Allen |
O filme destaca a fragilidade humana diante da perda e do desejo. A fala vazia de Jasmine — esse discurso sem destinatário, desconectado do presente — reflete a sua tentativa de permanecer na fantasia enquanto evita a dor do real. Ela está eclipsada em suas lembranças, tentando recuperar o gozo perdido de um passado idealizado.
Lacan nos ensina que alienação e separação são processos que se entrelaçam. Na alienação, o sujeito se entrega ao desejo do Outro, abrindo mão de si mesmo. Já na separação, surge a possibilidade de se reconhecer como sujeito desejante, mas isso também traz à tona a falta no Outro. Jasmine, ao romper com seu mundo fantasioso, vivencia um colapso narcisista, mas algo de seu desejo começa a emergir, ainda que instável e transitório.
No final, o isolamento de Jasmine não é apenas físico, mas psíquico. Sentada sozinha no banco, sua fala desconectada revela que, mesmo perdida, algo de sua verdade foi tocado. É um ciclo de desconstrução que permite uma nova perspectiva sobre sua história, ainda que ela, talvez, nunca consiga sustentá-la plenamente.
Blue Jasmine, com sua narrativa de dor, perda e ilusão, nos convida a refletir sobre as fragilidades humanas, o vazio que tentamos evitar e o custo de confrontar nossas próprias fantasias. janeiro 07, 2025
por Elenice Milani | 07 de Janeiro de 2025 Cate Blanchett no filme "Blue Jasmine" (2013), dirigido por Woody Allen A análise d...
A Experiência de Megalópoles
por Elenice Milani | 19 de Dezembro de 2024
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Imagem do filme "Magalópoles" de Francis Ford Coppola. |
A experiência de Megalópoles, filme épico e audacioso de Francis Ford Coppola, evoca sentimentos complexos e ressonantes, quase como a leitura de Finnegans Wake de James Joyce. Ambos são criações que demandam um olhar além do imediato, uma disposição para o estranhamento e a angústia de buscar significado onde ele parece escapar.
Como Joyce, que transformou a linguagem em um mosaico de significados, Coppola propõe, em Megalópoles, uma narrativa fragmentada e quase onírica, onde o público se vê diante de uma colcha de retalhos que revela o inconsciente do criador. Essa abordagem remete à ideia lacaniana do vazio estrutural que move o desejo humano, sempre em busca de algo inalcançável. O filme de Coppola não é uma experiência de respostas; é uma provocação de incompletude, uma obra que reverbera a própria estrutura do psiquismo, onde o desejo habita o espaço entre o que é dito e o que permanece inacessível.
Em Megalópoles, o diretor oferece uma Nova Roma futurista — um cenário distópico para debater a morte da democracia e as ambições de poder que desestabilizam qualquer ideal de sociedade perfeita. Esse cenário, ao mesmo tempo épico e surreal, não nos conduz a uma moral ou a uma solução clara, mas, ao contrário, intensifica a experiência de um fluxo de consciência, de uma sucessão de cenas que espelham a associação livre, o método fundamental da psicanálise.
Coppola, ao criar esse filme, desafia a si mesmo e o público, explorando uma narrativa visual que nos suga, sem oferecer uma direção clara, mas abrindo espaço para interpretações que se multiplicam e se fragmentam. Em última instância, Megalópoles pode ser lido como uma metáfora da própria trajetória de Coppola, um herói que, tendo experimentado sucessos e fracassos, se lança agora ao seu projeto mais arriscado — um testamento à criatividade que, segundo Lacan, tem na invenção o amparo do “sinthome” que nos permite lidar com o Real.
Assim como Joyce e Coppola entendem o vanguardismo como uma necessidade de correr riscos e explorar o não dito, Megalópoles se apresenta como um filme que não se compromete com a expectativa do público, mas com a liberdade criativa de seu diretor. É uma obra aberta que, mais do que oferecer respostas, nos convida a pensar sobre o desejo, o vazio e a invenção — as forças que moldam a nossa própria condição humana.
por Elenice Milani | 19 de Dezembro de 2024 Imagem do filme "Magalópoles" de Francis Ford Coppola. A experiência de...
O amante e o amado
por Elenice Milani | 20 de Setembro de 2024
No texto anterior ("Lacan no Banquete de Platão), comentamos a abordagem do "amor grego" feita por Lacan nos momentos iniciais do Seminário 8, a partir da obra "O Banquete" de Platão.
Continuamos a acompanhar a leitura lacaniana de "O Banquete", desta vez nos atendo à questão do “amante” e do “amado”, o érastes e o érôménos.
Este conjunto de textos com a abordagem lacaniana da obra platônica fazem parte de uma pesquisa que estamos desenvolvendo em torno das noções de desejo, amor e gozo.
Muito embora, na antiguidade a experiência analítica, evidentemente, não exista, e o inconsciente seja uma dimensão totalmente desconhecida, Lacan afirma que em "O Banquete" podemos ver aparecer claramente "o amante como o sujeito do desejo - com todo o peso que tem para nós este termo, o desejo - e o amado como aquele que, nesse par, é o único a ter alguma coisa" (Lacan, 1992 [1960], p. 42). Daí, observa Lacan, a questão de saber se aquilo que o “amado” possui tem relação, “mesmo uma relação qualquer”, com aquilo que ao amante, 0 sujeito do desejo, falta.
O érastes, o amante, é aquele a quem falta algo, mas não sabe o que é, enquanto, o éromenos, o amado, é aquele que não sabe o que tem. A ambos, portanto, falta um saber. Porém, entre esses dois termos que constituem, em sua essência, o amante e o amado, não há nenhuma coincidência. “O que falta ao amante não é o que existe, escondido, no amado. No fenômeno, encontra-se a cada passo o dilaceramento, a discordância" (Lacan, 1992 [1960], p. 46).
Lacan lembra que, por séculos, todas as reflexões sobre o amor, feitas por padres ou por libertinos, se referiram a esse “texto inaugural”. Mas diferentemente de uma linhagem interpretativa que se estabeleceu ao longo do tempo, ele considera que a questão de “O Banquete” não é simplesmente dizer o que é o amor, mas sim de nos mostrar que está dificuldade indica, na verdade, a impossibilidade de dizer alguma coisa sobre o amor que se sustente.
Para Lacan, desejo é "desejo de outra coisa". A partir dessa noção, ele vê na dialética socrática do amor a possibilidade de pensar a articulação do desejo com o amor, e captar o momento de virada, "da conjunção do desejo com seu objeto enquanto inadequado", de onde deve surgir essa “significação que se chama o amor”.
Aprender essa articulação entre desejo e amor e também suas implicações no simbólico, no imaginário e no real, é fundamental para começar a compreender a transferência. A partir desse pano de fundo, e antes de prosseguir, Lacan pergunta “qual a nossa relação com o ser do paciente? Sabe-se bem, que é disso que se trata em análise. Nosso acesso a esse ser, será ou não o do amor?”
A transferência, segundo Lacan, é onde se manifesta o problema da relação analisado-analista. Portanto, é para melhor determinar essa relação, que Lacan, no Seminário 8, pensará o amor, que “o fenômeno da transferência é considerado imitar ao máximo, até mesmo chegando a confundir-se com ele” (Lacan, 1992 [1960], p. 45).
Antes de concluir suas reflexões sobre o amante e o amante, Lacan conduz-nos a pensar na diferença entre o objeto de nosso amor enquanto recoberto pelas nossas fantasias e o ser do outro. O outro, o amado, é apreendido em si mesmo pelo amante, ou através da fantasia?
Referências bibliográficas
LACAN, Jacques. O seminário, livro 8: a transferência 1960-1961. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; versão brasileira de Dulce Duque Estrada; revisão Romildo do Rego Barros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.PLATÃO. Diálogos: Mênon, Banquete, Fedro. 5ª ed., trad. Jorge Paleikat, Rio de Janeiro, Porto Alegre, São Paulo: Editora Globo, 1962.
setembro 20, 2024
por Elenice Milani | 20 de Setembro de 2024 No texto anterior ("Lacan no Banquete de Platão), comentamos a abordagem do ...
Lacan no Banquete de Platão
por Elenice Milani | 20 de Agosto de 2024
No texto de abertura da série “Desejo, amor e gozo” (iniciada com o texto “O segredo de Sócrates” já publicado em nosso site) fomos apresentados por Lacan a sugestivas aproximações entre psicanálise e filosofia.
Ali fomos tentados a formular uma pergunta: se a filosofia é o amor pelo saber seria a psicanálise o saber do amor? Se sim, então quando o filósofo Sócrates, um amante do saber, pergunta-se sobre o amor adentra pela primeira vez na história no campo da psicanálise que, como evidentemente sabemos, seria apenas desbravado e nomeado muitos séculos depois.
Para Lacan, o saber psicanalítico do amor funda-se justamente na metafísica ocidental. Não por acaso portanto, a primeira parte do “Seminário 8”, dedicado à transferência, faz um longo e detalhado comentário de “ O Banquete” de Platão. Lacan dedicará 10 capítulos à obra não tanto, segundo ele, para elucidar a questão da natureza do amor, mas sim para esclarecer a relação do amor com a transferência.
Em linhas gerais, explica Lacan, “O Banquete” é uma cerimônia com regras, um rito, um concurso íntimo entre pessoas da elite grega, que revela hábitos, costumes e níveis culturais. Cada participante deve fazer um discurso sobre o amor.
“O Banquete” será lido por Lacan como “uma espécie de relato de sessões psicanalíticas” (Lacan, 1992 [1960], p. 34), atentando-se especialmente à presença de Alcebíades. “E cabe a nós compreender o sentido que há em seu discurso”, solicita Lacan aos seus ouvintes.
O amor grego é o amor dos belos rapazes, o que não se trata, de modo algum, segundo Lacan, de uma dissolução do laço social, mas de outra coisa: “é um fato da cultura, e é também no meio dos mestres da Grécia, no meio de pessoas de uma certa classe no nível onde reina e se elabora a cultura, que esse amor é posto em prática. Esse amor é, evidentemente, o grande centro de elaboração das relações inter-humanas” (Lacan, 1992 [1960], p. 38).
Lacan então relembra o esquema da perversão com a cultura. Ele explica que a neurose favorece a criação cultural, enquanto a perversão, produto da cultura, opera em sentido oposto, “de elaboração, de construção, de sublimação”. “E o círculo se fecha, a perversão trazendo os elementos que trabalham a sociedade, a neurose favorecendo a criação de novos elementos de cultura”, o que, segundo o próprio Lacan, não impede que o amor grego permaneça uma perversão, por maior sublimação que seja.
Antes de prosseguir, Lacan diz que este amor da escola pode servir como uma escola de amor, mas isso, adverte, não significa que defenda um retorno ao amor platônico, pois “no ponto em que estamos (....) o amor está desengrenado da beleza”. E, para Lacan, é justamente a beleza, e sua função trágica, que dá o verdadeiro sentido ao que Platão dirá sobre o amor.
Na contemporaneidade, segundo Lacan, se quisermos apreender algo sobre o amor é à ficção que devemos recorrer, mais precisamente à ficção cinematográfica. "É o nível do que se apresenta como a materialização mais viva da ficção como essencial. Entre nós, é o cinema". Platão, acredita Lacan, ficaria satisfeito com essa invenção.
Não há melhor ilustração nas artes daquilo que Platão coloca na origem de sua visão de mundo. oque se exprime no mito da caverna, nós o vemos todos os dias, ilustrado por esses raios dançantes que vêm, sobre a tela, manifestar todos os nossos sentimentos em estado de sombras. E é realmente a esta dimensão que, na arte de nossos dias, pertencem, de modo mais eminente, a defesa e a ilustração do amor (Lacan, 1992 [1960], p. 41).
Antes de encerrar esse momento da longa abordagem do texto platônico que realizará no Seminário 8, Lacan faz duas afirmações prometendo retomá-las mais a frente: a primeira: "o amor é um sentimento cômico", a segunda: “o amor é dar o que não se tem”.
Referências bibliográficas
por Elenice Milani | 20 de Agosto de 2024 Plato's Symposium por Anselm Feuerbach (1869) No texto de abertura da série “Desejo...
O segredo de Sócrates
por Elenice Milani | 04 de Agosto de 2024
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Raffaello Sanzio | The School of Athens |
Lacan, a partir do testemunho de Platão, dirá que justamente aquele que nada pretendia saber desejava, em segredo, saber o que é o amor. “O segredo de Sócrates estará por trás de tudo o que diremos este ano sobre a transferência. Este segredo, Sócrates o confessou. Mas não é porque se o confessa que um segredo deixa de ser um segredo. Sócrates pretende nada saber, senão saber reconhecer o que é o amor, saber reconhecer infalivelmente”. Nas próprias palavras de Sócrates, testemunhadas por Platão no Lísis. "Eu sou um homem ordinário e inútil em tudo o mais, mas isto, de algum modo, foi-me dado pelo deus: ser capaz de reconhecer, instantaneamente, quem ama e quem é amado" (Platão, Lísis, 204 b – 204 c).
Seguindo as ideias lançadas por Lacan sobre o caso Sócrates, podemos arriscar a dizer que estamos diante não apenas do momento inaugural da metafísica ocidental, mas da própria psicanálise, evidentemente não nomeada, ou, ao menos, diante de uma “história de amor” e da primeira experiência de cura pela palavra.
A seguir, Lacan faz um paralelo de Sócrates com Freud. Este, segundo Lacan, escolhe Eros para servi-lo e para servir-se dele. Mas servir-se dele para quê? A resposta de Lacan para a questão é longa, mas decisiva para a compreensão de seu pensamento sobre a questão da transferência e a relação desta com Eros.
Lacan responderá que em Freud já não se trata de servir-se de Eros visando o Supremo Bem, em sentido platônico, pois, conforme os saberes próprios do campo psicanálise, o domínio de Eros é mais extenso que qualquer campo coberto pelo Bem. É desta premissa que Lacan partirá no Seminário 8 para abordar a transferência, afirmando a seguir um aspecto decisivo de seu pensamento sobre o tema. “Essa, aliás, é uma coisa perpetuamente presente em meu espírito (...) a respeito da transferência (...) não se deve de nenhuma maneira, nem preconcebida, nem permanente, colocar como primeiro termo do fim se usa ação o bem, pretenso ou não, de seu paciente, mas precisamente o seu eros” (Lacan, 1992 [1960], p. 15).
Lacan encerra a introdução do Seminário 8 apontando para a necessidade de desenvolvimento de uma abordagem psicanalítica do amor à altura de uma longa tradição que tratou amor e da qual a psicanálise se serviu. Lacan, como já entrevíamos, anuncia que partirá de "O Banquete" de Platão, texto, segundo ele, de interesse monumental, original com referência a toda tradição que é a nossa, no que diz respeito à estrutura do amor. "Vou mostrar-lhes o que podemos encontrar aí, o que podemos deduzir daí, como marcos essenciais, até na história deste debate sobre o que realmente ocorreu na primeira transferência analítica".
No próximo texto de nossa série “desejo, amor, gozo” perscrutaremos a leitura e os comentários de Lacan do texto “O Banquete” desvelando, quem sabe, segredos socráticos.
REFERÊNCIA
LACAN, Jacques. O seminário, livro 8: a transferência 1960-1961. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; versão brasileira de Dulce Duque Estrada; revisão Romildo do Rego Barros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
PLATÃO. Diálogos: Mênon, Banquete, Fedro. 5ª ed., trad. Jorge Paleikat, Rio de Janeiro, Porto Alegre, São Paulo: Editora Globo, 1962.
______ Lísis. Introdução versão e notas de Francisco de Oliveira. Brasília: UNB, 1995.
por Elenice Milani | 04 de Agosto de 2024 Raffaello Sanzio | The School of Athens “No começo era o amor” é o título da introdução d...
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